Desmistificando: Quais as maiores dificuldades na tradução do japonês?

BrasileJapo

E quais os erros mais comuns?

No post sobre tradução perguntamos se havia interesse em entender um pouco mais as dificuldades específicas ao lidar com a tradução do japonês, como houve um (*depressão*), aqui apresentaremos uma lista de características do japonês que podem dar muita dor de cabeça aos tradutores.

Mas, antes de começar, temos que deixar claro que difícil ou fácil é algo muito subjetivo e que depende da língua para a qual está sendo traduzido. Ou seja, as dificuldades estão intimamente relacionadas às diferenças entre as duas línguas em questão, o que é mais fácil ou difícil vai depender do ponto de vista.


Estrangeirismo e Gairaigo


Uma das coisas mais engraçadas no japonês é a quantidade absurda de palavras estrangeiras que são usadas em todas as áreas, desde as mais técnicas ao dia a dia. Essas palavras estrangeiras emprestadas são chamadas por eles de Gairaigo.

Existem várias delas vindas do português, inglês, alemão, holandês e chinês, mas, seja de onde vieram, todas elas são adaptadas para o alfabeto japonês e aqui já começa o primeiro problema.

Podemos simplificar que existem duas formas de lidar com palavras emprestadas, uma é manter ela da forma original, às vezes até com a gramática original. Em português temos “Design” e “Marketing”, em inglês temos “Naïve” e “Data/Datum”, os exemplos são muitos.

A outra é adaptar para os fonemas e gramática daquela língua, criando uma palavra semelhante, baseada de alguma forma naquela outra. Exemplos em português são muitos: Líder, Time, Azeite, Abajur, X-burguer… Na verdade não é 08 ou 80: “Design” pode ser escrito como é em inglês, mas não é falado com a pronúncia deles.

Quando os japoneses passaram a exportar tais palavras para sua língua, eles tiveram um outro problema: a diferença de formas de escrita além dos fonemas disponíveis limitados. Ou seja, tiveram que adaptar tudo mesmo, não tinha como deixar original. E adaptaram de tal forma que o “inglês japonês” é um dialeto próprio e bem complicado de ser aprendido.

Em todo caso, a princípio não é muito difícil lidar com as Garaigos, basta pegar um dicionário de japonês que tem lá a grandíssima maioria delas, pelo menos as “normais”.

Mas… E quando o autor decide pegar emprestado uma palavra que não existe ainda no japonês? Ou se trata de um nome ou termo inventado estrangeiro? Aqui vem um dos maiores desafios de um tradutor, ele tem que inverter a lógica e tentar adivinhar qual devia ser o nome original no alfabeto romano.

Isso é agravado mais ainda pelo fato do japonês não dar a menor mínima para como era escrito originalmente, mas se focar na pronúncia, pior, no que eles conseguem ouvir. Dessa forma:

“Love” vira “Rabu”: Já que não possuem o O aberto (“ló”), nem o V, nem conseguem diferenciar o R de L ou identificam a vogal fraca no final da palavra.

“Valeska” vira “Waresuka”: Note como o V agora tem som de U (“uá”), além do problema do L e o S que agora ganhou vogal (no caso a vogal neutra deles, o “u”).

“Qamar” vira “Amaru”: Outro curioso, onde não conseguem interpretar o tipo de Q da pronúncia árabe (é feito bem no fundo da boca), sendo totalmente ignorado.

“Car” vira “Kaa”: Talvez você esperasse um “karu”, mas o R às vezes é tão fraco que ao invés do R, eles ouvem apenas o prolongamento da vogal. Similar ao que o pessoal aqui do Nordeste faz com os R, lá eles têm “dóó” e não “dor”, ou os velhos “fazê”, “falá”, etc.

“Coup d’etat” vira “Kuudetaa”: Da coleção palavras irreconhecíveis, note que a grafia original não vale nada e a expressão francesa de “golpe de estado” vira uma única palavra.

É relativamente mais fácil encontrar as palavras de origem inglesa, é uma missão quase impossível quando se trata de línguas muito diferentes como o árabe, dinamarquês, grego, persa, etc.

capa_lucifer_e_o_martelo_10_gÉ por causa disso que cada país vai usar nomes diferentes, no caso de Lúcifer e o Martelo, por exemplo, os nomes utilizados pela JBC, pelo anime, pelo Crunchyroll Manga e pela editora americana são totalmente diferentes a ponto de serem irreconhecíveis.

Pior que às vezes nem o autor sabe como é romanizado, ele apenas ouviu de alguém e usou, por exemplo, ou ele mesmo utiliza mais de uma forma em momentos diferentes, como Log Horizon com seu Theldesia e Serdesea, ambos leituras oficiais de “serudeshia”.

Veja que não é uma questão de certo ou errado, mesmo que o autor romanize de uma forma X, isso não invalida as outras formas de se escrever aquilo. Não há problema algum se alguém quiser traduzir Dragon Ball e colocar o nome de “Vedita” em vez do “Vegeta”, o original mesmo é “Bejiita”. O importante é a criação de um padrão e de uma identidade para aquela mídia, em outras palavras, eleger um nome e seguir até o final.

Isso tudo é um verdadeiro caos e independe da fluência do tradutor, acaba sendo uma questão de muita pesquisa, muito dicionário e, às vezes, puro chute. De todos os erros mais comuns, esse é o mais perdoável, principalmente quando o autor só decide mostrar o nome romanizado lá na frente.

Infelizmente para as editoras, é também um dos assuntos que mais causa polêmica e drama desnecessários, um assunto onde muitos “fãs” são intolerantes e xiitas, fazendo verdadeiras jihads contra uma simples escolha pessoal de termo que em nada interfere no conteúdo final da tradução. Sim, porque Aladim ou Aladdin não faz a menor diferença, não é como se tivessem chamado de Joãozinho…


Efeitos Sonoros


Já comentei sobre isso várias vezes, então vou apenas citar mesmo: o Japão possui diversas onomatopeias e efeitos sonoros, alguns super específicos, que são impossíveis de traduzir. Sem contar que podem ser muito difíceis para um ocidental entendê-las também. O tradutor acaba tendo que priorizar ou o som original, a naturalidade ou o sentido. Por causa da variedade e dificuldade de entendimento, há muitos tradutores que falham miseravelmente em traduzi-las.

Para entender mais sobre este tópico leia: As mimeses e onomatopeias japonesas.


Kanjis e suas Funcionalidades


Não podemos ignorar o poder dos kanjis e suas propriedades, são uma parte muitíssimo importante da expressão textual japonesa e também causa de vários problemas. De fato, uma mesma “palavra oral” pode ser escrita com diversos caracteres, é como se no texto eles fossem excessivamente mais específicos.

Peguemos “kaku” como exemplo, significa escrever ou desenhar, mas na grafia, o “kaku” de desenhar é “描く” e o de escrever, “書く”. Mas se o autor gostaria de uma palavra ambígua, que possa tanto ser escrever quanto desenhar, ele pode simplesmente escrevê-la com o hiragana “かく” ou criar um conjunto de kanjis novos para ser lido como “kaku”. Ele poderia até juntar os dois e te indicar que a leitura é “kaku”.

Isso foi feito em Lúcifer e o Martelo, no título original Hoshi no Samidare, “hoshi” é escrito como “惑星” que deveria ser lido como “wakusei”, em vez disso o autor indicou que deveria ser lido como “hoshi”. Criando um título intraduzível: o significado de um com a leitura de outro.

Os casos de manipulação de kanjis são inúmeros no Japão, é uma das grandes ferramentas para criar metáforas ou sentidos únicos. Infelizmente essa manipulação às vezes não pode ser traduzida ou é um grande desafio.

Um dos casos mais interessantes envolvendo kanjis e mangás que já vi aconteceu na obra Boku to Kanojo no XXX, onde o autor escreveu o diálogo de um dos personagens com a pronúncia correta, mas os kanjis errados. De forma que lendo e interpretando apenas os sons era possível entender as falas, mas os kanjis passavam uma mensagem totalmente insana, embora com certa lógica ou temática.

Numa tentativa falha de tentar te fazer entender como pode uma coisa dessa, é similar a eu escrever “coração?” com a intenção de que você leia “qu’oras são?” (que horas são?). Ou algo mais fácil: “maldita” como “mal-dita”, “sossego” como “só cego”.

Quando o autor decide usar isso em larga escala e sair fazendo trocadilho e piada então… Coitado do senhor tradutor.


Área e Espaço Ocupado pelas Palavras


Talvez o leitor se pergunte imediatamente como isso é um problema de tradução? No texto sobre traduções a gente acabou não tocando neste assunto, mas no estudo de tradução você tem um conceito de “invariância”, ou seja, preservação e retenção de certos aspectos durante a passagem de um a outro:

  • Invariância Semântica: A preservação do significado do texto original.
  • Invariância Pragmática: A preservação da intenção do texto original, como a ideia de urgência, polidez, etc.
  • Invariância Lexical: A preservação das palavras do original, tentando usar as mesmas locuções e radicais nas traduções das palavras.
  • Invariância Estrutural: A preservação das estruturas de frases, parágrafo e outras textuais.
  • Invariância Espacial: A preservação das características externas gerais do texto, como comprimento, localização na página, numero de páginas que ocupa, etc.

Se você leu aquele meu texto imenso, deve ter notado que me prendi mais às duas primeiras e cheguei a comentar um pouco sobre as traduções literais (que envolvem as outras). Numa tradução de verdade, é impossível preservar tudo perfeitamente e vemos um esquema de prioridade (que também chegamos a comentar) a depender do tipo de texto e objetivos.

Mas voltando ao nosso tópico, o problema aqui é exatamente as três últimas. Por causa da diferenças entre as línguas é quase impossível ter invariância lexical, estrutural e espacial. Ainda mais quando lembramos que um kanji pode ser uma palavra completa e que não há o uso de espaço entre palavras no japonês. Uma frase de três caracteres japoneses apenas pode se transformar em uma de 15 em português (contando espaços).

E como isso afeta o light novel, mangá e anime? Nos livros, romances e novels a consequência é mais comparativa, um japonês pode escrever vários volumes com a mesma quantidade de páginas que no Brasil se transformará em vários com valores diferentes.

Só que no mangá e anime a coisa é outra, em ambos o espaço para a tradução é limitado e o número de páginas (minutos) é constante. No anime essa limitação vem do espaço na tela e no tempo disponível para ser lido, no caso de dublagens há o tempo para aquilo ser falado e encaixado. No mangá a limitação vem na forma dos balões, caixas de narrações e outros.

Imagine você que um personagem pergunte “Que lugar é aquele?” e o outro responda “É o aeroporto”. Em japonês basta dois caracteres para responder o que no nosso deu 13, logo o balão original será adequado para essa frase de dois caracteres, fazendo com que não haja espaço para colocar tamanha palavrona ou frase. Tenho certeza que você, leitor de mangá, já viu isso acontecer o tempo todo, balões minúsculos com uma frase imensa, ou frases minúsculas nadando num balão gigantesco. Ou aqueles balões com tanto hífen que você corre de medo.

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Volume 1, Éden.

Isso é especialmente complicado nesta língua nossa com advérbios longos, os velhos “mentes”. O tradutor então passa a ter que substituir os “Exatamente!” com “Isso!”, os “Isso é verdade mesmo?” com “Sério?”, “Definitivamente!” com “Com certeza!”. Às vezes sumindo com sujeitos, usando verbos mais curtos, simplificando a frase e outros. Mesmo com todo o cuidado de um tradutor, ainda haverá aqueles balões com a fonte tipográfica diminuída pra caber e uma certa variação nas quantidade de branco dentro dos balões.

moritoIsso também traz grandes consequências no visual e edição, a L&PM, por exemplo, utiliza uma configuração em que o tamanho da fonte se adequa aos espaço da caixa de texto e, por isso, cada balão deles tem um tamanho de fonte absurdamente diferente (veja o exemplo ao lado de Fim de Verão). A ferramenta serve exatamente para criar um valor padrão de branco dentro dos balões e melhor adaptar o texto ao espaço disponível. Em quadrinhos americanos e europeus isso fica lindo e padronizado, mas nos mangás isso vira o samba do crioulo doido. É por isso que as outras editoras ao invés trabalham com número padrão de tamanho de fonte, com leves variações de acordo com as variações de espaço disponível e características originais.

Este tópico é geralmente algo que claramente divide os tradutores em amadores e profissionais, não são poucos que deixam passar essas três últimas invariâncias ou sequer reconhecem a responsabilidade de se adequar ao espaço e mídia para a qual se está traduzindo. Também prova que tradução é mais do que apenas falar ou ser fluente em japonês.

trVale a pena notar também que nas produções nacionais essa bagunça de espaço vazio nos balões não é para ocorrer, já que eles seriam criados baseado já no tamanho do texto do roteiro. Isso ajuda a dar um ar mais harmonioso para a obra e melhor utiliza o espaço disponível para ilustrações, paisagens, etc.

Um último comentário também neste assunto é que essa variação e balões com espaçamento branco excessivo ajuda na percepção das odiadas transparências nos mangás (que poderia passar batida se fossem balões justos). Olha esse exemplo acima do volume 4 de Vagabond, vê como tradução e adaptação de obras japonesas são super complexas e intrincadas? Várias coisas que parecem desconexas são intimamente envolvidas.


Variedade de Palavras


O japonês pode ser muito pobre em alguns aspectos, por exemplo, na quantidade de fonemas, mas em outros… Por causa do que explicamos lá em cima sobre kanjis e como eles carregam sentidos diferentes, é possível criar dezenas de palavras parecidas e ao mesmo tempo únicas. Uma das minhas categorias favoritas é “chuva”, com mais de 50 palavras, vejamos algumas:

  • (ame): chuva;
  • 日照雨 (sobae ame): uma chuva localizada, enquanto em volta está céu aberto, as velhas criadoras de arco-íris;
  • 涼雨 (ryouu): chuva gelada;
  • 夜雨 (yau): chuva noturna;
  • 弱雨 (jakuu): chuva fraca;
  • 細雨 (saiu): garoa, chuvisco;
  • 風雨 (fuu): tempestade, chuva e vento.

De fato, em se tratando de natureza e condições, os japoneses possuem centenas de palavras intraduzíveis, algumas que acho bonitas ou que preciso urgentemente (por favor, não me julguem, haha):

  • 木漏れ日 (komorebi): aqueles raios de luz que passam pelas copas das árvores;
  • 波打ち際 (namiuchigiwa): a fina linha que separa a praia do mar, a área onde as ondas batem (imagem abaixo);
  • 積ん読 (tsundoku): aqueles livros que você comprou e não leu, ficando empilhado em algum canto;
  • 上げ劣り (ageotori): palavra arcaica para descrever aquele sentimento de que seu novo corte de cabelo ficou horrível;
  • 居留守 (irusu): o verbo para aquele que finge que não está quando batem à porta.
  • 食い倒れ (kuidaore): literalmente comer até abrir falência.

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Embora essas palavras não tenha sinônimas na nossa língua, é possível descrevê-las ou criar locuções e frases. O problema todo é que nem sempre isso é uma coisa boa na tradução. Imagine um japonês falando que está chovendo com “sobae ame”, imagina um diálogo assim: “nossa que chuva localizada enquanto que o entorno está claro!”. Quer coisa mais não-natural?! Geralmente o tradutor vai ter que adaptar e se virar com coisas como “nossa, está claro, mas aqui está chovendo!” ou acaba sendo simplificado mesmo “nossa que chuva isolada!”. (Isso sem contar o problema de espaço que acabamos de comentar, né?)

Outro problema é quando a palavra original é muito vaga ou pode se referir a várias coisas diferentes. Um caso típico é “mushi”, que significa ser vivo rastejante ou inferior, pode ser usado para insetos, vermes, lesmas, aranhas, cobrinhas e todo tipo de animalzinho. É super comum os mangás terem a tradução “inseto”, só para mais adiante aparecer como um verme ou algum outro bicho, dando aquela ideia de que o autor não sabe biologia. O mesmo é muito comum com vírus, bactéria e protozoários, a quantidade de bactérias-vírus nas traduções não é brincadeira…


Falta de Sujeitos e Troca de Narrador


O japonês é uma língua de tópicos, para uma frase estar completa em japonês, basta um verbo, por exemplo. Eles não tem o que nós chamamos de “sujeito” (embora a partícula “ga” possa ser chamada de partícula de sujeito). Numa frase como “watashi wa Roses”, “watashi wa” não é um sujeito, mas o tópico, é como se eu dissesse “quanto a mim, Roses” e não “eu sou Roses”.

Talvez assim fique difícil de perceber a diferença, então vamos tentar esta frase: “neko wa ashita”, se usarmos a lógica de sujeito a tradução seria “gato é amanhã”, o que convenhamos não faz sentido. O correto é “quanto ao gato, amanhã”, essa seria uma resposta comum a uma pergunta do tipo “quando seu cachorro vai ao veterinário? E o gato?”.

Para ajudar ainda mais, o “watashi wa” é como um destacador, um esclarecedor, do que está se falando. Assim como nós brasileiros dizemos coisas como “na minha opinião, acho ruim” ou “Brasil, um país em crise”. De fato, como já comentamos, eles não são obrigatórios nas frases, basta o verbo.

Como o verbo japonês não tem conjugação de número, pessoa e gênero, não dá para saber quem é o falante só de olhar para ele como é possível às vezes em português (“sou” obviamente é do sujeito “eu”, mas já “disse”, poderia ser de “você”, “ela”, “ele” e “a gente”). Para piorar, moças podem se expressar usando seu próprio nome, o que no Ocidente chamamos de “falar na terceira pessoa”.

Tudo isso que descrevemos aqui facilita e muito um dos erros mais comuns e graves de tradução do japonês, quando é traduzido um diálogo sendo falado pela pessoa errada. No caso de mangás, um dos auxiliares mais importantes são os rabinhos dos balões, por isso também que não é incomum se colocar caricaturas e legendas de quem está falando dentro deles. É muito fácil se desligar e traduzir como se fosse o diálogo do outro personagem.

Felizmente, existem algumas características que ajudam a decifrar na própria linguagem, já que no Japão existem algumas diferenciações na forma de uma mulher ou homem falar, embora várias sejam neutras.

Este é um erro que geralmente passa batido aos leitores, embora possa ser a causa de uma certa confusão. Recentemente dei bastante de cara com ele lendo os mangás no Crunchyroll Manga.


Falta de Plural


Assim como não há várias conjugações  dos verbos, substantivos também não têm gêneros ou número. Dessa forma, quando não há numerais ou valores atribuídos a eles, é difícil de saber se trata-se de um ou mais daquele substantivo.

No caso de mangás, isso é particularmente fácil de identificar por causa do desenho. Por exemplo, o tradutor traduz “te trouxe uma flor”, mas o desenho ilustra três flores, ou seja, o correto deveria ser “te trouxe umas flores”. É fácil de notar o erro e corrigi-lo.

O pior é quando não há imagem daquilo ou se trata de um livro (novel/light novel), nesses casos às vezes dá para identificar o erro no contexto ou na mudança súbita de singular para plural entre os parágrafos.

Geralmente é algo que passa batido para os leitores quando não estamos prestando atenção, mas ao prestar atenção, é muito incômodo a quantidade de vezes que esse tipo de coisa passa pelos tradutores e revisores, até mesmo nas traduções de notícias.

A caráter de curiosidade, é bem engraçado quando os autores japoneses às vezes escrevem títulos ou nomes em inglês ou outra língua e esquecem de conjugar. Um dos casos mais famosos é “Dragon Ball”, que deveria ser “Dragon Balls”, já que são esferas do dragão. Dentro do volume o autor chama toda a coleção de apenas dragon ball, o “s” nas traduções foram colocados pelos tradutores.

O mesmo acontece bastante com nomes de raças e coisas criadas pelo autor, os tradutores se viram para criar plurais daquilo para a versão traduzida.


Ordem das Sentenças


Por último, comentar sobre a ordem das sentenças! No português temos o que chamamos de SVO (sujeito-verbo-objeto) ou VO, no japonês, bem… é V, OV ou falso SOV (a depender do estudioso). O que basicamente significa que o verbo é a última coisa da frase.

Por si só isso já é um problema para se traduzir, mas no caso de mangás a coisa piora, já que a frase pode ser separada entre balões ou até páginas diferentes. Já leu aquele mangá em que o personagem está narrando um pensamento durante várias páginas enquanto ilustra e relembra?

Imagina uma moça relembrando a juventude e terminando tudo com “sinto falta”. Na lógica brasileira, “sinto falta” seria a primeira coisa na nossa frase (deixando o sujeito oculto). Mas por causa da ordem japonesa a coisa acaba ficando vaga e tem que ser adaptado, a frase “sinto falta da escola, dos amigos, das provas, dos professores” acaba sendo adaptada para “a escola, os amigos, as provas, os professores… Sinto falta de tudo isso”.

Ás vezes dá para fazer a inversão de balões sem causar nenhum problema à história, outras vezes não tem jeito mesmo e vai ter que ficar essas frases artificiais ou simples enumeração de itens.

Particularmente é uma das coisas que mais me incomoda nas traduções, talvez agora você também passe a reconhecer esse tipo de coisa acontecendo, pois tem em quase todos os mangás que já foram traduzidos no Brasil.

O ruim disso é que fica essa ideia de algo “vago”, quando o autor não está divagando, mas falando uma frase mesmo. Tradutores bons de verdade, conseguem dar um jeito na maioria desses problemas e deixam tudo bem fluido e natural, mas tradutor ruim… É de doer, fica parecendo que o autor é incapaz de formar uma frase completa.


Outros


Existem outras dificuldades que podem dar dor de cabeça, vou enumerar para os curiosos:

  • Falta de artigos definidos e indefinidos (a/o x um/uma);
  • Falta de preposições e uso de partículas estruturais intraduzíveis;
  • Ocultação constante de objetos e sujeitos, utilização constante de frases simples e reduzidas;
  • Falta de tempo futuro, sendo passado a ideia do futuro através de outras palavras e termos;
  • Romanizações e criação de termos que soam português devido a similaridade fonética (o velho problema de Kagome e senpai, nos meus exemplos de chuva tivemos também o saiu e ame), veja mais aqui;
  • Polidez e formalidade com gramática e vocabulário diferente, comentamos isso aqui.

Quem sabe agora você consiga reconhecer mais facilmente os erros nas traduções e valorizar as editoras e tradutores que não os cometem! É sempre bom ter uma visão crítica daquilo que se consome, você não  precisa ser fluente em japonês para perceber erros e inconsistências (embora provar é outra história), se o seu mangá tá confuso e cheio de contradição, é muito provável que foi mal traduzido.


Desmistificando é uma coluna semanal, lançada nas quintas-feiras, sobre o mercado e mangás brasileiros e internacionais. Você pode ver todas as outras postagens anteriores desta coluna aqui. Como sempre sugestões e comentários também são sempre bem-vindos! 🙂

17 Comments

  • SIRIUS BLACK

    Roses, eu gostaria que me respondesse a uma pergunta… E a questão dos nomes estrangeiros, nos mangás japoneses, como fica a escrita no japonês? Os japoneses “ajaponesam” os nomes? Porque hoje eu estava lendo GANGSTA. e o mangá é cheio de nomes estrangeiros. Eu gostaria que você esclarecesse isso para mim, por favor. Obrigado desde já.

    • Roses

      Sim, eles escrevem em katakana (um dos silabários) como eles ouvem aquele nome. É exatamente como a gente faz com nomes de países e cidades. A gente fala Tóquio, Quioto, Nova Iorque, Moscou, Berlim, etc. Mesmo quando escrevemos algo de forma “original”, a pronúncia continua abrasileirada, prova disso é o X-burguer que nasceu de como falávamos Cheeseburger.

      O grande problema no japonês é que os fonemas deles são beeeem limitados, eles têm apenas 5 vogais (a gente tem por volta de 12 a depender do dialeto), e 2 semi-vogais em apenas 3 situações (nós temos semi-vogais para notas as situações já que é um alfabeto).

      Por isso que a palavra DAY, que nós brasileiro leríamos DÉI, vira DII para o japonês. Eles não têm a nossa vogal aberta É, nem muito menos a semi-vogal I atrelada a uma E.

      O resultado de tudo isso são nomes absolutamente ininteligíveis, sério.

      Peguei alguns exemplos de Gangsta.:
      Nicolas Brown (ニコラス・ブラウン, Nikorasu Buraun)
      Worick Arcangelo (ワーリック・アーカーンジェロー, Waarikku Aakaanjeroo)
      Alex Benedetto ​(アレックス・ベネデット, Arekkusu Benedetto)

      É bem complicado lidar com nomes, quando são nomes “normais” você consegue achar nomes de pessoas reais. Por exemplo, Arekkusu já é um nome de praxe para Alex, então você acha na internet fácil os japoneses escrevendo nomes de autores, atores, cantores, etc, dessa forma. Em dois segundo eu acho como dizer qualquer nome de verdade, exemplos, Darwin:

      チャールズ・ロバート・ダーウィン(Charles Robert Darwin) (Chaarusu Robaato Daawin)

      O problemão mesmo é quando o nome é inventado, incomum ou com uma leitura alternativa. Gosto de ler, por exemplo, um mangá que se passa no Oriente Médio e é impressionante a quantidade de horas que eu passo pesquisando como é o nome das pessoas e coisas. XD

      Respondi satisfatoriamente? 🙂

      • SIRIUS BLACK

        Impressionante, Roses! Obrigado pelo esclarecimento (novamente) e pela excelente resposta. Os nomes “ajaponesados” ficam bem estranhos, realmente. Ficam quase e/ou irreconhecíveis. Eu não sou fã do que eles fazem, mas… Já que é assim, fazer o que?

        • Roses

          Você tem que lembrar, Sirius, que ler o alfabeto ocidental é difícil. Mesmo eles aprendendo a escrevê-lo e reconhecer, não quer dizer que saibam pronunciar. Você, por exemplo, sabe pronunciar a palavra alemã “Eichhörnchen”? Para eles o trabalho é em dobro, não só não saberão pronunciar, como terão dificuldade de escrever e lembrar grafias. Você não se enrola para escrever certos nomes de mangás? Imagina se tivesse que lembrar o som e isso em kanji? É essa a dor japonesa.

  • Eder

    Muito interessante o texto, e benditos sejam os bons tradutores xD
    Acho que os dialetos japoneses também devem ser um problema na hora de traduzir/adaptar. Segunda a Hetalia Wiki, o autor costuma usar diferentes dialetos para os personagens (o Espanha usa um dialeto de Kansai, enquanto o Polônia fala com o dialeto de Nagoya, por exemplo), mas não sei se houve essa diferenciação na versão da NewPOP…
    Quanto aos estrangeirismos, tem uma matéria no Made in Japan (http://madeinjapan.com.br/2014/01/09/novos-fonemas-da-lingua-japonesa/) sobre novos fonemas que foram incorporados na escrita japonesa e na página da Wikipédia em português sobre katakana dá para ver os caracteres modernos. Como exemplo, o jogo japonês “Valkyrie Profile” usa o “va” (ヴァ) em vez de “ba” (バ) ou “wa” (ワ). Curiosamente, se você pesquisar por “Vanessa” na Wikipédia japonesa, chegará numa página que apresenta três grafias diferentes para o nome: ヴァネッサ, バネッサ e ベネッサ(respectivamente, “Vanessa”, “Banessa” e… “Benessa”?! xD). Nesse caso, acho que o Valesca do texto viraria ヴァレスカ (Varesuka) ou バレスカ (Baresuka) e não Walesuka (ワレスカ), não?
    Aliás, esse desmistificando acabou me lembrando de um tweet que vi há algum tempo:

    https://twitter.com/katsuyukiohmuro/status/479323078434910208

    • Roses

      Na verdade, não são novos fonemas necessariamente. Um fonema é uma unidade sonora, logo ela deve ser pronunciada. O fato de terem adaptado o alfabeto para permitir a escrita de V e outros não significa que eles sejam capazes de pronunciar aquilo. De fato, a maioria absoluta não sabe pronunciar o V ou o L ocidental, logo não é um novo fonema, mas apenas uma nova forma de representação. Diga-se de passagem, não há nenhum caractere novo ou moderno, apenas junções e indicadores que foram sendo criados pela própria população e autores, por isso alguns são muito usados, outros ainda são raros. Tudo isso é representativo, grafia, não tem nada a ver com fonemas. Tanto que são todos representações feitos em katakana, se houvesse de fato fonemas novos eles viriam também no formato hiragana.

      De forma comparativa, a adição em 2012 de y, w e k ao alfabeto brasileiro mudou alguma coisa em como você fala? Foi uma adição fonética? Não, é uma mera grafia.

      Sem querer desrespeitar ninguém, mas o Made in Japan tem várias matéria com erros horrorosos linguisticamente falando, ele confundem termos (como fonema) e afirmam coisas como se fosse lei, o que não é verdade. As aulas deles de como escrever seu nome em japonês por exemplo são cheias de erros, pelo simples fato de que não se usa a grafia para definir como será em japonês, mas o fonema. Por exemplo, você fala vikipédia ou uíkipédia? É isso que vai definir como se escreve e não se tem W. O que eles escrevem serve de curiosidade para ignorantes da língua, mas jamais de estudo real, eles não têm base de conhecimento linguístico para poder discutir aqueles assuntos de forma séria, são apenas fluentes em japonês contando curiosidades. Da mesma forma, qualquer fluente brasileiro em português está apto a discutir fonética e gramática brasileira ou isso requer um estudo aprimorado? Entende o ponto?

      Waleska é uá na pronúncia de algum canto aí (russo?), mas de seu nome é pronunciado Valeska, estão seria Ba de fato.

      Não comentei de dialetos pois dialeto é um problema em QUALQUER tradução de qualquer língua. 🙂

      • Roses

        Exemplo de erro do MiJ, ele diz que Diego na “pronúncia nova” seria o “de-i-e-go” (ディエゴ), mas isso não é verdade, a grandíssima maioria dos brasileiros não fala di e ti, mas dji e tchi, logo se você fala o seu nome como djiego você sempre utilizará o dji (ぢ). A grafia de Di é especialmente para palavras estrangeiras que de fato pronunciam o Di e Ti, como Dinner ou Day (respectivamente ディナー e ディー), ou Team (ティーム). Escolhi esses especialmente para você ver que grafia não vale nada, mas pronúncia.

        • Eder

          Ué, meu comentário apareceu?! xD
          Até pensei que havia dado algum erro, já que ele não havia aparecido quando cliquei em publicar… (maldita ansiedade que me levou a repetir o tweet no comentário abaixo, fiquem à vontade para apagá-lo, se acharem necessário ^^’).

          Quanto a resposta, entendi. Comentei sobre o MiJ apenas por curiosidade. De fato, Diego e Tiago normalmente são pronunciados como “Djiego” e “Tchiago”, portanto, não bate com a informação deles.

        • Roses

          Ele foi pro Spam por causa dos links, eu tive que manualmente resgatá-lo, foi difícil, uma dura jornada, batalhas e perdas, mas consegui, o trouxe de volta são e salvo *drama*

          Desculpa se a resposta pareceu agressiva ou quem sabe arrogante, é meio que uma frustração minha essas “verdades” erradas. O fato de qualquer um poder publicar o que quiser (eu inclusa) é uma faca de dois gumes. No caso do japonês, a quantidade de erros é bem alto. ><

  • Manipulação de kanjis é um recurso brilhante, pena que são, muitas vezes, intraduzíveis. No mangá Azumanga Daioh, deve haver muita manipulação de kanji, porque há muita coisa que, provavelmente, deveria ser engraçada, mas eu não acho graça, pois não deve ter sido possível traduzir essa manipulações. O exemplo dado em português com manipulação nesse sentido foi bem satisfatório, ao meu ver! Na sua opinião, a Drik/Adriana Sada é um exemplo de tradutora que consegue adaptar essas “manipulações de kanjis” para o português da melhor forma possível?

    • Roses

      Eu gosto das traduções dela, mas não tenho como dizer a capacidade dela de fazer coisas, nunca comparei minuciosamente as traduções dela ao original ou algo assim.

  • Isso me fez lembrar de Tsubasa e do personagem Phi. Pelo menos foi assim que a JBC adaptou seu nome, pois já vi Fai, Fay, Fye… A pronúncia é a mesma, mas não existe consenso sobre a escrita.

  • Bruno

    Nos EUA, o Zoro de One Piece virou Zolo, porque eles tinham medo de dar problema com o nome do clássico personagem Zorro

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