Biblioteca Brasileira de Mangás

Desmistificando: Os mangás espelhados

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Seria algo assim tão terrível?

Geralmente, para os leitores brasileiros, ouvir “mangá espelhado” já é motivo para um barraco e chiliques nervosos. É sinônimo absoluto de má qualidade e algo a ser protestado e boicotado. Mas qual é realmente o problema de um mangá espelhado? O que o torna esse monstro inadmissível? Por que ele gera tanta desaprovação?


O que é o espelhamento?


Exemplificação das 3 inversões em 2D.

Chama-se de “espelhamento” quando uma imagem é invertida no eixo horizontal, igual ao que acontece quando olhamos num espelho. Quando isso é feito dizemos que a imagem é espelhada, ou seja, a direita e esquerda são invertidas.

Além da inversão no eixo horizontal, ainda pode ser feito a inversão vertical, chamada de reflexo, e inversão em ambos os eixos. Completando 3 inversões possíveis em 2 dimensões.

Nos mangás, entretanto, as editoras usam apenas o espelhamento para “corrigir” a ordem de leitura para a ordem ocidental. Já que em japonês os quadros e balões são ordenados da direita para a esquerda, sendo no Ocidente o inverso.

Vale a pena comentar que essas inversões são usadas em mangás e animes, pelos seus artistas e ilustradores, o tempo todo para criar imagens de espelhos e reflexos, dentre outros detalhes nas obras. De fato no mundo da ilustração e design esse é um recurso muitíssimo útil.


Consequências do espelhamento


Obviamente a primeira consequência na arte é que tudo foi invertido horizontalmente, mas quais problemas surgem disso?

Para começar, todas as onomatopeias, falas, quadros, placas, números e qualquer outra coisa escrita ficará ao contrário (como se tivesse escrito numa ambulância). Assim, se foi escolhido espelhar algo a empresa terá o trabalho de ter que refazer tudo isso e adaptá-las, mesmo as que originalmente estivessem no nosso alfabeto.

Mas a coisa vai muito além de um caso de imagens, o espelhamento influência também na história, já que todos os personagens destros viraram canhotos e todos os canhotos viraram destros. A coisa continua com direções e qualquer coisa que envolva sentidos. Se o personagem originalmente manda o outro virar à direita, agora a tradução tem que ser invertida e ele virará para a esquerda.

Essas mudanças, entretanto, dificilmente influenciam na história em si, pois não é importante se ele vai à esquerda ou direita, se é destro ou canhoto. Mas nem sempre, há obras onde isso pode ser muito importante, imagine uma obra onde o personagem sofre bullying por ser canhoto ou mostra o sofrimento de se achar o instrumento musical que quer para canhotos… A inversão acaba não fazendo nenhum sentido já que na realidade ser provocado por ser destro faz muito pouco sentido, já que a maioria da população é destra.

Todas essas consequências na arte e na tradução gera uma terceira consequência, o custo para adaptação. Traduzir invertido pode exigir mais atenção dos envolvidos na tradução e revisão, mas não aumenta os custos em si. O mesmo não pode ser dito da edição e diagramação, agora os responsáveis terão que apagar e substituir várias coisas que antes não eram tocadas ou apenas “legendadas” (colocado a tradução ao lado). Imagina um mangá cheio de cenas de lutas e seus efeitos visuais, o trabalho de substituí-las é absurdamente maior do que colocar uma caixa de texto.

Sendo assim, é na verdade mais barato para uma editora não espelhar, também menos trabalhoso no geral, economizando em adaptações e tempo necessários.


Por que espelhar?


Se é algo que pode ficar muito mais caro e trabalhoso, por que uma editora escolhe espelhar? A resposta é simples, para ficar mais natural e aumentar o alcance da sua obra para todos os públicos, não apenas para o “otaku”.

Quando uma empresa espelha um mangá, ela não está mais pensando naquele produto como um “mangá”, mas como um quadrinho que pode ser lido por qualquer um, algo mais universal. Por exemplo, se eu for lançar um mangá o Brasil para crianças de 3-5 anos, é realmente aceitável ensiná-la a “ler ao contrário”?

Um adulto depois de algum tempo consegue se acostumar a automaticamente ler no sentido de leitura japonês, mas mesmo ele confunde. Tente você ler um mangá, depois um comic e depois um mangá novamente, é irritante como seu cérebro do nada começa ler na ordem incorreta e você começa a fazer confusão. A quantidade de vezes que recomecei a leitura de um quadrinho ocidental ao contrário não foi pouca…

Se isso acontece com pessoas adultas e acostumadas com o diacho da ordem japonesa, imagina a confusão na cabeça de uma criança que está sendo ensinada a ordem de leitura ocidental? Ela é incapaz de aprender? Não. Mas é um esforço desnecessário? Com certeza! Uma dificuldade gratuita como essa pode ser a diferença entre ela gostar ou não da obra. Por que, então, não espelhar e tornar a coisa fácil e natural para um ocidental?

Essa técnica de vendas foi muito utilizada no passado, quando mangá eram ocidentalizados para facilitar a leitura. Todos os primeiros mangás no Brasil vieram espelhados para serem inclusivos, de leitura instintiva. Atualmente ninguém faz isso mais, com pequenas exceções aqui e ali. Por quê?

Não precisa de muito esforço para perceber como mangá é produto de nicho, mesmo o Naruto e Dragon Ball. Embora tenha se propagado um pouco com o passar dos anos, ler mangá em muitos lugares é algo que te exclui da maioria. É claro que isso vai depender da sua comunidade, em São Paulo você acha muito mais leitores, enquanto em outras cidades periga você ser o único de toda a região.

Mangá sendo um produto para um nicho específico assim, acaba sendo produzido da forma mais exclusiva possível, com o sentido de leitura japonês, honoríficos, termos japoneses, efeitos sonoros em japonês com “legendas”, formato japonês, título japonês, nomes japoneses. Espelhar um mangá vai contra toda essa tendência atual de ficar o mais japonês possível.

Obras espelhadas fazem parte de outro grupo de características que buscam mais que apenas “ocidentalizar” o mangá, mas torná-lo natural e mais instintivo: títulos traduzidos, efeitos sonoros traduzidos e substituídos, nomes aportuguesados, adaptações para o dia a dia brasileiro, etc.

Qual a real importância de alguém se chamar Hana e não Ana? De se chamar Shinonozuki ao invés de Silva? Alguém pode levantar que há jogos de palavras nos nomes japoneses. E? Você não consegue entender ou perceber esses jogos, não vai mudar absolutamente nada. De fato trocar os nomes é uma das coisas que mais se faz na literatura, mas vira pecado nos mangás e outras obras jovens (tipo Edward e Eduardo da saga Crepúsculo). Falando em pecado, até a bíblia é toda aportuguesada, ou você acha que existem nomes como “Pedro”, “José”, “Maria” e “Jesus” em hebraico?

Por mais que talvez você não goste da ideia de ocidentalizar seu mangá, de transformá-lo em apenas “quadrinho”, isso não torna essa estratégia “errada”. Nos Estados Unidos, por exemplo, um dos mangás espelhados de maior sucesso foi Chi’s Sweet Home da Vertical, recorde de vendas no país, atualmente sendo relançado em formato Omnibus. A história universal e a “desjaponização” a tornou muito mais acessível para todas as idades, tendo vendido para adultos e crianças, mulheres e homens, sendo que originalmente trata-se de um produto Seinen (jovens e adultos do sexo masculino). A mesma tática foi usada na versão francesa, Chi – Une vie de chat, outro enorme sucesso de vendas que tinha idade mínima recomendada de 6 anos, sob o selo Glénat Kids.

Dessa forma, se é a intenção da editora ser mais universal, considerando que espelhar aquele mangá não causa nenhuma consequência grave, essa é uma tática mais que válida. Às vezes, o mangá tem tanto potencial que, mesmo acontecendo a comunidade “otaku” boicotar, as venda fora do nicho mais que compensam. Afinal, só por ser mangá, não significa que seja de interesse apenas de “otakus” ou que deva ser feito para eles. Não existe uma lei dizendo que mangás só podem ser lançados para essa comunidade, rs.


Desmistificando é uma coluna semanal, lançada nas quintas-feiras, sobre o mercado e mangás brasileiros e internacionais. Você pode ver todas as outras postagens anteriores desta coluna aqui. Sugestões e comentários também são sempre bem-vindos! 🙂

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