Biblioteca Brasileira de Mangás

Desmistificando: A Pseudo-Cultura Japonesa

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Pseudo culturaOu como enganar toda uma geração…

Já falamos um pouco sobre isso no post sobre Honoríficos, mas vamos falar de novo!

Sabe todo esse conhecimento “otaku” que você tem? A grandíssima maioria é válido no mundo todo, excluindo o Japão. Sim, é uma “cultura japonesa” que vale em todo o Ocidente, mas que não bate com a realidade japonesa. A pseudo-cultura japonesa.

Mas como assim?! A verdade é que, na época que o mangá e anime despontaram no Ocidente, havia uma quantidade muito pequena de falantes de japonês, muitos eram descendentes e nunca realmente tiveram contato com o Japão. Foram essas pessoas, esses tradutores, que fizeram o intercâmbios de conhecimentos. Não é de surpreender que muita coisa simplesmente chegou errada ou imprecisa ou fora de lugar.

Pior ainda, tudo que chegava para nós era traduzido do inglês, absolutamente tudo. Logo todos esses erros foram massivamente transmitidos para os brasileiros e o mesmo ocorreu por todo o Ocidente.

Quando as coisas começaram a melhorar, quando passamos a ter nossos próprios tradutores, quando pessoas mais capacitadas e estudadas assumiram, já era tarde demais. Os erros criaram raízes profundas e ninguém realmente se “importava” em ser coerente com a cultura japonesa, o importante era criar um conhecimento que unisse e diferenciasse aquele nicho, que os tornasse únicos.

Para piorar mais, se por um lado passamos a ter pessoas mais qualificadas, a quantidade de tradutores amadores aumentou exponencialmente e passaram a traduzir “de fã para fã”, criando e estabelecendo ainda mais erros e absurdos que são perpetuados pelo mercado, que não se atreve a corrigir os leitores. (E como culpá-los? Já viu a quantidade de “fãs” reclamando de termos e nomes? Quantos não defendem que scanlators é melhor?)

O resultado disso tudo é uma cultura japonesa irreal, que nem sempre bate com a cultura existente no Japão. Em páginas da Wikipédia japonesa, por exemplo, você encontra avisos de que aquele termo “fora do Japão” pode significar outras coisas. Não é irônico que uma “cultura japonesa” só funcione e seja correta “fora do Japão”?! Uma cultura japonesa não-japonesa?!

Mas por que isso ainda ocorre tanto? O principal vilão de tudo isso é a distância entre as duas culturas. Não só os caracteres e língua totalmente diferente, a cultura, a ética e costumes dificultam o entendimento. Não podemos ignorar também a distância física, ir ao Japão ou encontrar um japonês de verdade não é trabalho fácil.

E essa é uma via de mão-dupla, a quantidade de absurdos sobre o Ocidente no Japão é ainda imensamente maior. Especialmente antes da internet, os japoneses só tinham conhecimento do exterior através de livros, às vezes muito mal traduzidos. É muito comum em mangás antigos aparecer explicações sobre animais, coisas e locais que não fazem o menor sentido. Ou caricaturas e visões até ofensivas do resto do mundo, como pode ser visto em várias obras do Tezuka.

Um exemplo disso é exatamente a visão de “gringo” dos japoneses. Quase todo americano nos mangás e anime são retratados como brancos, loiros dos olhos azuis (bem Brad Pitt ou Leonardo DiCaprio), geralmente usando óculos escuros e roupas de jeans, jaquetas e tatuagens, às vezes com motos e as cores da bandeira americana (branco, azul e vermelho).

   

Que tipo de erros?

Ortografia

Ainda hoje várias palavras são escritas erradas. Não, não estou falando de aportuguesamento, adaptações ou de romanizações diferentes, mas de falta de noção de gramática japonesa que cria palavras erradas mesmo. Muitas das vezes vindos de “conhecimentos” totalmente deturpados, traduzidos de forma equivocada, como o “Arucard” na época do anime de Hellsing. Pois, segundo os tradutores, era esse o nome correto já que “japonês não tem L”. O fato de japonês também não ter o R e o D sem vogal foi ignorado. O que era “Alucard” ou “Arucaado”, recebeu um nome ocidental alternativo baseado apenas no achismo.

Este caso é ainda mais interessante quando identificamos que as pessoas “responsáveis” pelo Arucard foram as mesmas que traduziram o anime de Hellsing para inglês, espalhando essa baboseira para todas as versões em diante, a brasileira inclusa. O que exemplifica como muitos dos responsáveis por “trazer” conhecimento, por fazer o intercâmbio de informações, sabiam um básico falho da língua e foram eles quem moldaram o que sabemos de japonês e anime no Ocidente.

Diga-se de passagem, na verdade é mentira, japonês fala L, sim. Esse é mais um mito. O que ocorre no Japão, e também em outros países orientais, é que alguns “R” e “L” se equivalem naquela língua, são formas diferentes de se falar a mesma sílaba. Muitas vezes são fonemas que na verdade não temos em português e nossa mente interpreta como “L” ou “R”, que é o que conhecemos e conseguimos identificar.

Para ficar claro, é igual aos inúmeros “R” no Brasil, que podem ser falados de várias formas diferentes, mas todos equivalem à mesma sílaba. Não importa se é um R do interior paulista, o do nordeste, o do centro-oeste, etc, continua sendo a mesma palavra. Dessa forma, assim como é possível se falar “correr” de várias formas, para um japonês “prayer” (oração, reza), “player” (jogador) e “preyer” (predador) viram todos a mesma coisa: “pureyaa”, ou “color” (cor), “collar” (colar), “calar” e “cará” (peixe) que é “karaa”.

É por causa disso que coisas como “flango” aparecem, muitos orientais são incapazes de ouvir a diferença entre “frango” e “flango”. Assim como brasileiros têm imensa dificuldade em ouvir o som “Th” americano e constantemente falam como “T”, “F” ou até “Z”: birfiday ou birziday (birthday, dia do nascimento). O famoso “three” (três) que vira “tree” (árvore) é nossa marca registrada.

Tudo isso é especialmente importante quando falamos das gairaigos (palavras estrangeiras na língua japonesa), já que são reflexos de como um japonês escuta e interpreta aqueles sons estrangeiros. Alucard, por exemplo, é Arucaado; Love é Rabu; Vidro é Bidoru; Pão é Pan.

Por algum motivo, a comunidade de fãs achava mais “chique” tentar falar como um japonês falaria. É muito mais chique assistir um “dorama” que um drama ou novela. Mesmo que falem tudo errado ou criem versões que não batam com as japonesas.

O mesmo ocorre com os pobres chineses e coreanos. Não é incomum ocidental chamar de “dorama”, uma pronúncia japonesa, obras dessas nacionalidades. Se vai chamar de “dorama” o drama japonês, tá na hora de chamar de “deulama” o coreano!

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Outro famoso é o “tankouhon” que já mostra outro tipo de erro ortográfico, que nascia da falta de conhecimentos gramaticais da língua, da tradução amadora de kanjis (caracteres japoneses). De fato, tankoubon (a forma correta) é a união de “tan”, “kou” e “hon”, mas que juntos sofrem mudanças fonéticas que transformam o “hon” em “bon”.

Kanjis lidos errados existem para todo lado, atualmente são mais raros, mas ainda existem. Um exemplo atual que conheço é a série “Yume no Shizuku Kin no Torikago”, que na internet aparece como “Yume no Shizuku Ougon no Torikago”, uma leitura errada de um dos kanjis. Outros exemplos são a “Tetsusaiga”, uma leitura errada de “Tessaiga” (a espada de Inu-Yasha) e o polêmico “tokuitsuban”, na capa do Rurouni Kenshin versão do autor da JBC, grafia errada de “tokuhitsuban”.

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Outro erro absolutamente hilário são os kanjis escritos errados ou trocados, usados em camisas, imagens, tatuagens, etc, ganhando conotações absurdas.

Essa “mania” ocidental é tão, mas tão comum que é vítima constante de gozação. Assim como você acha na internet placas e coisas mal traduzidas por eles, em japonês há várias palhaçadas nossas, desde camisas com frases absurdas até tatuagens vergonhosas.

Gramática

Ignorando os muitos casos de gente tentando falar japonês e falhando bravamente, muitos fãs aprendem “pedaços” e saem usando sem realmente compreender do que se trata. Um exemplo típico são os honoríficos, sobre os quais já falamos anteriormente.

Mas existem vários outros exemplos, como o caso do “hai” (sim, formal) e iee” (não, formal), do “watashi” e “anata” (variações de eu e você) que são retirados do contexto e gramática e usados como traduções literais das palavras ocidentais. Você deve lembrar de vários conhecidos otakus dizendo “hai” por aí sem ter a menor noção de como usar de forma apropriada.

E isso acontece também nas muitas “aulas” de japonês, onde o japonês é convenientemente alterado para encaixar na gramática e lógica ocidental. Ou nos muitos guias de como “escrever o seu nome em japonês” que são um monte de receitas que no fundo tenta simplificar e tornar fácil algo muito mais complexo. Usando essas receitas, por exemplo, Love seria “Robe”, quando de fato é “Rabu”.

É difícil para muitas pessoas entenderem que não podemos utilizar as mesmas “técnicas” de tradução e ensinamento de línguas como inglês e espanhol no japonês. As línguas que mais temos contato (inglês, francês, espanhol) são línguas parecidíssimas com a nossa. E não só em vocabulário, mas em gramática, lógica e estrutura. A tal ponto que traduzir literalmente, ou seja, apenas trocando vocabulários um pelos outros dá muito certo e faz todo o sentido (com exceções, é claro).

Por exemplo: “the book is on the table” vira “o livro está sobre a mesa” apenas com a troca de vocabulário, fazendo muitíssimo sentido e ainda até gramaticalmente correto. Já “hon wa teeburu no ue ni arimasu” ficaria algo horrível como “Livro – mesa de topo em existe”, nada faz sentido, a ordem está incorreta, a estrutura das locuções e frases é diferente, a lógica de ênfase, falta de artigos, verbo diferente, etc.

Não é uma questão de ser “difícil”, é uma questão de ser totalmente diferente em muitos aspectos o que torna a tradução literal impossível. É preciso entender que japonês não tem uma palavra “sim” como nós, ou um “você/tu”, ou um “eu”, etc; “hai” é muito mais que apenas “sim”. Inclusive, às vezes a tradução mais precisa de “hai” para o português é “não”, o contexto é essencial!

Ou seja, não dá para fazer um simples jogo de equivalência e ignorar toda a gramática e contexto, já é um problema fazer isso nas línguas próximas, imagina fazer isso em uma absolutamente diferente?

É extamente essa tentativa ingênua de simplificar que causa todos os erros absurdos envolvendo a gramática, ao ponto de certas pessoas tentarem falar japonês ou introduzir pedaços no diálogo e acabar falando alguma outra coisa que definitivamente não é japonês.

Definições e Significados

Um dos erros mais irritantes são os erros de definição. Ocidentais elegem certas palavras e dão significados que não batem com a realidade japonesa. Exemplos? São tantos!

Mangá e Anime

Melhores exemplos que existem, a ideia de que mangá é o nome dos quadrinhos no estilo japonês e anime as animações no estilo japonês.

No Japão mangá é sinônimo de quadrinho, eles chamam qualquer quadrinho de mangá e chamam qualquer “mangá” (no sentido ocidental) de “comics” (quadrinho em inglês). Se eu for agora na Wikipédia japonesa e procurar por Garfield (sim, aquelas tirinhas do gatinho gordo e laranja que odeia as segundas-feiras) aparece: “ガーフィールド (漫画)“, romanizando: “Garfield (mangá)”. O mesmo vale para anime, que nada mais é que uma forma reduzida de “animation” e vale para, bem, qualquer animação, oras!!

Da mesma forma que é tudo mangá, é tudo comics também. Japoneses chamam suas obras de “comic” (コミック) ou “cartoon” e seus “mangakás” de “cartoonist” (cartunista). Veja um exemplo abaixo do “Mangá Taishou” (prêmio japa) e a associação de mangakás:

   

Gêneros e demografias

O mundo dos gêneros é outro que sofre de completa falta de contato com o Japão, a maioria ou tem uma conotação errada ou antiga.

Shoujo ai, por exemplo, é um termo antigo, relacionado à pedofilia e o “lolicon”. Remete ao interesse por garotas, sexual ou apenas platônico, e não é sinônimo de “Yuri”. Embora ambos possam ser grafados como GirlsLove. Shonen ai segue a mesma linha de raciocínio.

Yaoi é outro caso engraçado, inicialmente um sinônimo das paródias criadas por fãs, no Ocidente virou nome de gênero. No Japão Yaoi e BoysLove são coisas diferentes, Yaoi são os doujinshis (publicações amadoras/sátiras) de conteúdo sexual, enquanto BoysLove é o gênero em si das publicações profissionais.

Hentai que é usado apenas no Ocidente como gênero, por lá é chamado de “seijin” (adulto), ou ainda “seijinmuke”, “seinen” (se lê igual, mas são kanjis diferentes do seinen que você conhece), “adult” (em inglês mesmo), “18kin” ou “ero”. A página da Wikipédia japonesa para “hentai” é particularmente engraçada e afirma que existem 46 línguas com o termo hentai como gênero na Wiki, que não inclui o japonês.

Ecchi é outro deturpado, no Japão ecchi (aitch, H) é usado para denotar perversão ou obscenidade. Não se trata de um gênero. Uma tradução interessante para ecchi seria safado e safadeza, alguém pode te perguntar se quer fazer ecchi ou acusá-lo de ser ecchi.

Existem mais inconsistências e diferenças em outros gêneros também, mas esses aí são os casos absurdos.

Tankoubon

No Ocidente um “volume de mangá”, no Japão é um tipo de livro e não é mais usado para se descrever o volume de quadrinhos, embora algumas pessoas ainda usem o termo casualmente. As editoras japonesas e lojas atualmente usam o termo “comic” para falar dos volumes, desvinculando do termo “hon” (livro).

Katana

Assim como aconteceu com anime e mangá, que foram reduzidos a significados específicos, o mesmo ocorreu com diversos outros.

Um exemplo típico é a katana, que no Ocidente virou um tipo de espada japonesa, enquanto no Oriente é a palavra “espada de uma lâmina”, incluso sabre, kukri, shamshir, shotel, talwar, urumi, yatagan, estilete, facão e faca – sim, você possui uma porção de katanas na sua casa.

Curiosamente, certas localidades chamam os facões típicos brasileiros como catana, mesma lógica anterior, mas para um significado diferente.

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Na verdade, pouquíssimas palavras são fieis aos seus significados originais exatos, todas elas acabam variando um pouco aqui e ali, o que é normal. Outras ganham vida própria e entram para a língua, o que também é normal. O que é estranho é usar termos errados para falar de coisas na outra cultura.

Não seria esquisito se o que chamamos de sertanejo no Brasil fosse chamado de pagode no resto do mundo? Já pensou a confusão que seria? Pois é isso que acontece com as demografias japonesas ocidentais – sim, japonesas ocidentais.


Desmistificando é uma coluna semanal, lançada nas quintas-feiras, sobre o mercado e mangás brasileiros e internacionais. Você pode ver todas as outras postagens anteriores desta coluna aqui. Sugestões e comentários também são sempre bem-vindos! 🙂


Se você estranhou o “BoysLove” e “GirlsLove” escrito junto, aqui vai uma pequena explicação: no Japão não existe espaço entre as palavras, nem plural. É impossível saber se veio de “Boy’s Love” (amor de menino), “Boys’ Love” (amor de meninos) ou “Boys Love” (amor meninesco/meninil). Assim neste tópico sobre cultura japonesa, preferi deixar a grafia mais neutra japonesa. O mesmo vale para GirlsLove.
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