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Conheça o mangá Otouto no Otto

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Mais do que um mangá

「Otouto no Otto」 é um mangá diferente mesmo no Japão. Embora o país não seja conhecido por ser homofóbico, isso não quer dizer nem um pouco que apoie a comunidade LGBT. Ao contrário da cultura ocidental, onde as pessoas falam alto seus preconceitos e acham que isso lhes dá algum direito de “evitar” aquilo, o velho “nada contra ____, só fique longe de mim”, o Japão é muito menos vocal, mas igualmente preconceituoso. Por lá se espera que você seja “profissional” e “educado” e deixe sua “bagagem pessoal” em casa. Seja gay em casa, seja cheirador de calcinha em casa, goste de lamber chão em casa, tenha um caso amoroso com seu abajur em casa (não que essas coisas sejam equivalentes…).

Por causa desse tipo de “filosofia”, japoneses dificilmente conversam sobre assuntos íntimos e pessoais um com os outros. Você pode notar isso em qualquer mangá, como é feito todo um drama em cima de coisas banais do ponto de vista brasileiro. E é por esse motivo também que não se fala abertamente sobre sexualidade ou, no caso, homossexualidade. Eles simplesmente preferem fingir que não existe, sendo um país sem praticamente nenhuma lei ou direito voltados para essa comunidade, nem a favor, nem contra.

Numa situação como essa os quadrinhos e livros acabam virando um santuário, aqui é possível conversar sobre essas coisas através da palavra escrita um com os outros na privacidade da sua casa. E isso é tão forte que estudiosos classificam coisas como “Boys Love” como um tipo de fenômeno lésbico, já que se tratam de em sua maioria mulheres que escrevem  erotismo uma para as outras.

Mas mesmo no quadrinho esses gêneros são reduzidos a nichos e coisas a serem escondidas. Basta ler qualquer história de fujoshis e você vai ver como existe a preocupação de “parecer normal”, “o que vão pensar de mim?”, até de ler os mangás debaixo do lençol. Curiosamente acaba sendo mais fácil justificar as fantasias exageradas ou mascaradas como os BL do que a literatura gay em si.

Visto toda essa situação, 「Otouto no Otto」 é inédito e extremamente polêmico. Aqui está um autor abertamente gay, autor de pornografia gay, escrevendo sobre ser gay e como a comunidade japonesa trata eles. Mais impressionante ainda, a obra consegue ser universal e trabalhar os principais pensamentos preconceituosos que constantemente são considerados aceitáveis, como se “tolerar” fosse uma postura digna, e ainda educar o público japonês de forma gentil.

Por ser uma obra de importância social e histórica, hoje apresentaremos para você 「Otouto no Otto」, com direito a spoilers, cuidado.


Visão Geral & Autor

Lançada em 2014 na revista 「Manga Action」 da Futabasha, 『Otouto no Otto』 (literalmente “o marido do meu irmão”) é uma publicação Seinen, do autor Gengoroh Tagame. Atualmente possui 3 volumes e ainda está sendo serializada, sem previsão de conclusão.

É uma das muitas obras do autor, principalmente conhecido pelas suas histórias de erotismo gay (especialmente BDSM), como 「Pride」. Trabalha com mangás profissionalmente desde 1982 e é um dos pouquíssimos autores gays assumidos e engajados (sendo que começou a carreira na literatura gay em 1994). Atualmente é um dos grandes nomes do mangá LGBT, senhor absoluto do BDSM gay, servindo de inspiração para vários outros que o seguiram.

Erroneamente na internet suas obras costumam ser classificadas como “Yaoi” e “Boys Love”, mas se trata na verdade de Gay-Comi, também chamadas de Bara ou Mens Love em oposição a Boys Love. Trata-se de um subgênero do Seinen (homens adultos), enquanto o Boys Love (Yaoi) é um subgênero do Josei (mulheres adultas). Ou seja, um é erotismo escrito majoritariamente por homens para homens e o outro é o total oposto, de mulheres para mulheres (embora nada impeça que um homem escreva ou leia Josei ou uma mulher, Gay-Comi), por esse motivo ambos são muitíssimo diferentes, mas isso podemos discutir outro dia.

 「Otouto no Otto」, entretanto, é uma de suas obras sem conteúdo erótico algum (embora tenha uma ou outra cena de nudez parcial), sendo apenas um Seinen de temática e personagens LGBT.

Chegou a ganhar o Prêmio por Excelência no 19º Japan Media Arts Festival em 2015.


História

A obra se passa na casa de Yaichi, um pai solteiro que vive com sua filha Kana. Dentro da sociedade típica japonesa um pai que cozinha e cuida de uma filha sozinho já é uma exceção, quando mais tarde é informado que ele é na verdade divorciado, mas ficou com a guarda da criança, você se vê apresentado a um personagem “moderno”, que já não vive naquela típica família tradicional japonesa. Entretanto essa modernidade não o protege de seus preconceitos.

Um dia Yaichi é visitado por Mike, o marido canadense de seu falecido irmão gêmeo, que até então ele fingia não existir. Com essa “invasão” na sua vida, Yaichi passa a questionar seus valores, posições e próprios preconceitos. Embora a história se foque em Yaichi, ele também explora a reação da criança ainda intocada pelo preconceito e curiosa, do gay assumido que tem que lidar com os julgamentos da sociedade e da própria comunidade que julga nas sombras.

Com a estadia prolongada de Mike, a confusão se instala dentro de Yaichi e ele passa a ter batalhas internas diárias, inclusive se questionando sobre o que aconteceria se Kana crescesse e um dia se casasse com outra mulher.


Temática LGBT & Embate de Culturas

Uma das características mais interessante da obra é como são trabalhados os questionamentos. Em momento algum Mike, o canadense gay, agressivamente prega ou exige qualquer tipo de direito ou posicionamento, toda a batalha acontece dentro da mente do protagonista, Yaichi.

Yaichi entra numa luta constante entre seus preconceitos pessoais, sua falta de conhecimento e até de coragem de se expor ao assunto, sua vergonha frente à sua filha que abertamente aceita o tio e suas tentativas de negar a realidade e lidar com isso. Em vários momentos o autor mostra o personagem pensando e dizendo coisas diferentes e opostas, exatamente regidos por todos esses sentimentos e pensamentos.

Outra coisa que o autor consegue passar através das páginas do mangá é o conceito absurdo de “tolerância” e como isso não está nem perto de “aceitação”. O protagonista começa a ter que encarar como o tempo todo apenas “tolerou” a sexualidade do irmão gêmeo, criando um abismo entre os dois, culminando numa situação em que gêmeos viraram estranhos.

E por mais que agora ele esteja tentando “fazer a coisa certa”, ele se vê traído pelos próprios pensamentos e vergonha. Assim cabe ao leitor acompanhar o amadurecimento do personagem, na sua batalha pessoal de entender o falecido irmão e sinceramente aceitar quem ele era.

Além de toda a temática LGBT o autor também aproveita e brinca com diferenças culturais. Mike sendo canadense traz várias manias ocidentais, além de diferenças físicas e culturais causando situações engraçadas e desconfortáveis. Como a quantidade de pelo facial e corporal dele, a cor e textura dos seus pelos, sua cultura de abraçar (japoneses não abraçam facilmente), sua visão de mundo, sua honestidade ao falar de sua intimidade, além de culinária, tatuagens, formas de se vestir, dentre outros.

Se você olhar com cuidado verá que o autor muito inteligentemente está comparando a diferença racial e cultural à diferença envolvendo a sexualidade. Ele mostra como o desconforto de lidar com um estrangeiro de cultura muito diferente é o mesmo desconforto de lidar com uma pessoa de diferente orientação sexual. Que racismo, xenofobia e homofobia são a mesma coisa, o desconforto e medo do diferente, daquilo que não nos é usual ou parte do dia a dia. E essa mensagem de aceitação e beleza das diferenças transcende a temática e luta gay e vai além, muito além.


Arte e Composição

Mike arrasando corações!

O traço do autor é leve, mas ao mesmo tempo realista, especialmente detalhado na anatomia e composição dos dois personagens masculinos, Mike e Yaichi.

Você pode notar ao lado como o autor desenha uma pessoa real, um homem “de verdade”, tanto a versão canadense quanto a japonesa. O detalhamento e cuidado nas linhas do corpo são de impressionar, com certeza vindo da experiências com pornografia e erotismo do autor, não que isso torne qualquer um dos dois “indecentes”.

Isso é especialmente importante para reforçar a ideia de que embora isto seja um quadrinho, uma história fictícia, a situação, a história é muitíssimo real. Embora Mike não exista verdadeiramente, existem milhares de Mikes mundo a fora, não se trata de uma fantasia do autor ou uma caricaturizacão de algum desejo como é os casos dos yaois. A imagem abaixo ilustra exatamente a diferença absurda entre o personagem gay e o personagem dos boys loves.

A arte simples e suave do autor casa perfeitamente com a mensagem, já que toda a atenção acaba focada no roteiro e não numa ilustração exótica e glamorosa.


「Otouto no Otto」 no Brasil?

A obra é o típico mangá que não deveria ser lançado para otakus, é mais que um mangá, é um quadrinho universal, acontece apenas que o autor nasceu no Japão, mas com certeza um cidadão do mundo.

Se depender das editoras tradicionais de quadrinhos uma obra dessa dificilmente chegará ao Brasil, felizmente o que não falta aqui é editoras, quem sabe uma delas seja capaz de ver o potencial da obra. O que me enche de esperança também que recentemente a série foi licenciada para dois grandes mercados: França e Estados Unidos, o que potencialmente aumenta sua visibilidade e as chances de ser notada pelo pessoal tupiniquim. Por outro lado a obra ainda está sendo publicada no país de origem e nós bem sabemos como nossas editoras têm evitado bastante esse tipo de situação.

Eu particularmente continuo esperançosa de ver uma obra desse calibre lançada no Brasil, talvez seja inocência da minha parte, mas quem sabe…

Por fim, confira um trailer da versão francesa:

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