Biblioteca Brasileira de Mangás

Desmistificando: O caso dos mangás financiados pelo público

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Uma forma de viabilizar uma obra?

Você já deve ter entrado em contato de alguma forma com aqueles sites de financiamento coletivos (crowdfunding), em que você se compromete a pagar um valor para ajudar algo a ocorrer (no caso a publicação de uma obra) e em troca recebe prêmios, brindes e produtos a depender do valor em questão, tipo o Catarse e o Kickstarter. Nos Estados Unidos, essa prática tem sido usada cada vez mais para viabilizar os lançamentos de séries de nicho, como clássicos, mangás de terror e eróticos. Algumas com grande sucesso, outras nem tanto.

Existem vários benefícios de se trabalhar com esse tipo de financiamento, sendo o primeiro deles um teste de público. Caso não saiba, se a campanha não atingir o objetivo proposto, todo mundo recebe o que pagou de volta e fim de história. Para a editora, isso significa não arriscar seu próprio capital em um produto arriscado, embora por outro lado ela tenha falhado perante a editora japonesa (o que teoricamente poderia pegar mal) e acaba tendo que divulgar valores e “segredos” empresariais. Sim, afinal eles devem informar o valor de cada objetivo e alguns ainda vão além com esquemas de custos, como o abaixo para Kodomo no Jikan, uma das obras financiadas pelos consumidores nos Estados Unidos.

Veja que aqui a empresa divide o valor recebido em 6: em vermelho, os custos de impressão; em azul, a porcentagem do site (no caso o Kickstarter); em amarelo, os custos de envio e manipulação do material; em laranja, os custos voltados para pagar pelos prêmios e extras; em verde, os custos com licenças; e em roxo, tradução, edição, paginação, etc.

Embora cada país seja uma realidade diferente, algumas coisas não mudam tanto assim. Fica fácil notar, por exemplo, como impressão é realmente a parte mais custosa, seguido de outros pequenos custos. De fato, se tirarmos o 10% do site e os 10% de prêmios, os custos de impressão ultrapassam mais da metade.

A seguir há mais valores que revelam outros custos associados com a publicação de mangás, exemplificado pelos títulos Kimagure Orange Road e o próprio Kodomo no Jikan. No caso de Kodomo, os valores foram os seguintes:

Note que foram mais 20 mil dólares (mais 12,5% do valor original) para colocar todas as páginas coloridas (todas elas), mais 30 mil (mais 18,75%) para usar offset e 80 mil (mais 50%) para adicionar capa dura e sobre-capa.

No caso de Kimagure Orange Road, o objetivo inicial era de 34.900 dólares para o lançamento do primeiro volume omnibus (contendo 3 edições), seguido dos seguintes objetivos para o lançamentos dos 5 demais: 56.900 (22 mil a mais), 74.900 (mais 18 mil), 89.900 (mais 15 mil), 105.900 (mais 16 mil)  e 119.900 (mais  14 mil). O motivo principal dessa variação pode estar relacionado ao número de páginas desses volumes, mas também aos tipos de custos que podem ser variáveis e fixos, assim o primeiro volume pagaria grande parte dos custos fixos, os demais então seriam mais baratos, ficando cada vez mais em conta conforme a tiragem e quantidade de volumes vai aumentando. Aqui fica bem evidente com o montante que se trabalha viabiliza e barateia a produção. Para mais informações sobre como funciona os custos, cheque este artigo.

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Esse tipo de projeto só funciona através do apoio digital dos leitores, o que significa um público mais limitado. Nos Estados Unidos a inclusão digital e o número de leitores é bem maior, o que viabiliza esse tipo de financiamento, talvez no Brasil a coisa não fosse para a frente só por esse motivo. Por lá, cada projeto chegou a ter quase mil pessoas ajudando.

Veja só, para uma série como Kodomo no Jikan, de “apenas” 13 volumes, a editora original pediu 157 mil dólares para ser lançado da forma mais básica e econômica possível. Esse valor chegaria a quase meio milhão!!! É claro que fica difícil de saber qual seria o valor real aqui no Brasil, mas não temos dúvidas de que seria um valor alto mesmo assim, com perigo de até ser maior ainda.

No caso de volumes únicos, tivemos valores como 25 mil dólares para o lançamento de Under the Air de Osamu Tezuka. Nesse caso, até que há precedentes de projetos no Brasil que pediram por valores similares e tiveram sucesso, mas se analisarmos bem, que tipo de obra de volume único teria a força necessária para formar uma campanha destas e ter sucesso? A maioria dos títulos pedidos pelo público excedem 10 volumes e dificilmente o formato omnibus econômico sem nenhum mimo ou página colorida agradaria o público brasileiro que cada vez mais exige melhores acabamentos. Imagine então o preço escandaloso que não seria uma campanha para trazer Jojo?

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Mas esse não é o único problema e polêmica por trás dessa prática. Talvez você se pergunte, o que a editora ganha com isso se todo o valor for mesmo convertido para pagar os custos? A editora lucrará através da venda do “resto” da tiragem. Que resto? Veja só, em nenhum momento eles informam qual a tiragem que será produzida com aquele valor e você só passa a receber edições impressas a partir de um certo montante, geralmente bem alto, no caso de Kodomo no Jikan, o valor mínimo para receber a série era 100 dólares, mas você tem uma enorme quantidade de pessoas que doaram além, chegando a 2.250 dólares!

No fundo, como o próprio gráfico mostrou, quem paga por tudo, inclusive os prêmios, são os próprios fãs (o que por si só já é problemático), mas quem fica com todo o lucro gerado pelas vendas desse material completamente financiado pelo público é a editora. Diga-se de passagem, a editora também pode usar esse dinheiro para “se pagar” pelo serviço prestado, que naquele gráfico lá em cima somou 14%. Ou seja, não só estariam pagando todos os seus custos externos, como todos os custos atribuídos à própria editora. É claro que a editora não estaria fazendo aquilo de graça, mas sem a transparência de dizer quantos volumes estão sendo impressos com aquele dinheiro, não é possível ter ideia do quanto a editora está lucrando e assim considerar se você acha aquele um montante “justo”. Entenda que estando totalmente pago (inclusive para si mesma), o preço de capa dos volumes são 100% lucro para a editora, distribuidoras e revendedoras.

Talvez você pense que já que está totalmente pago, a editora poderia vender o mangá por um valor mais baixo e acessível, mas não é assim que acontece no mercado norte-americano, os volumes são lançados a preço de mercado. É difícil não se sentir usado e dividido entre o desejo de ter aquela obra e o desconforto de estar literalmente dando dinheiro para uma empresa.

Veja que no Brasil temos várias campanhas do tipo sendo feitas no Catarse, mas geralmente por autores independentes que buscam o apoio do público. Aqui a coisa acaba sendo um pouco diferente, já que você está apoiando diretamente aquele autor e o lucro que venha a ser conseguido só auxiliará mais ainda esse autor a se pagar e continuar produzindo aquilo que você gosta. Mesmo na ocasião do financiamento coletivo de Combo Rangers, todo o valor arrecadado foi só para os artistas envolvidos e nada para a editora. No caso de uma empresa, o lucro fica todo com ela e o autor vê apenas aquela porcentagem das licenças, o que essa editora fará com o lucro é completamente desconhecido, quem sabe ela use para lançar outros mangás, quem sabe vá parar em coisas totalmente não relacionadas.

Vale a pena comentar que algumas dessas campanhas têm apoio dos autores japoneses, que até se envolvem e produzem extras e prêmios exclusivos para quem apoia. Mas não fica claro se ele recebe a mais por isso, fora sua porcentagem usual de direitos autorais.

Outro ponto a ser questionado é a falta de fiscalização, já que se trata de “doação”, a empresa pode fazer o que bem entende com aquilo, ela pode alegar custos inexistentes, extrapolar valores e até dar cano. É claro que esse extremo seria mais raro devido ao suicídio empresarial que seria… Mas práticas de moral questionáveis são extremamente possíveis. Problemas com as recompensas, então, seriam bem difíceis e chatas de resolver e aqui dificilmente valeria código de consumidor.

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Com certeza para fazer algo assim seria preciso um processo de licenciamento diferente, um pré-aprovamento da editora e autor, se não a editora estaria prometendo um produto que ela não tem o direito, o que seria ridículo. Que editoras e séries estariam disponíveis para esse tipo de publicação deve variar bastante, a única que tenho certeza que aceita trabalhar esse tipo de projeto é a Tezuka Productions.

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Por último, vale a pena lembrar que após o fim da campanha, tendo ela atingido o objetivo, há um tempo entre a editora  receber o dinheiro, produzir e entregar o material. Quando você é cobrado esse valor e quando a editora o recebe também depende das regras de cada site e modalidades da campanha. No caso do Kickstarter eles recebem assim que a campanha é finalizada e tenha atingido o objetivo.

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Será que funcionaria esse tipo de coisa aqui no Brasil? Você se sentiria confortável pagando os custos de produção no lugar da editora? Você confiaria na “boa intenção” da editora? Seria essa a melhor forma de trazer obras de nicho?

Veja mais campanhas americanas aqui.

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