Biblioteca Brasileira de Mangás

Desmistificando: A Polêmica por Trás de NGNL

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O que é o questionável uso de tracing?

Talvez você já tenha ouvido alguém comentando como o autor supostamente abandonou o mangá de No Game No Life ou o anime por ter sido pego copiando as artes de outros artistas e autores. Embora esse não seja o motivo oficial dos problemas e supostos “abandonos” dessas duas mídias, de fato o autor foi pego fazendo tracing em toda, literalmente toda, a franquia de NGNL, no mangá, capas e extras do anime e também na novel.

Mas o que seria “tracing“? Para ser verdadeiramente uma cópia de algo, aquilo tem que ser literalmente a reprodução de forma “fiel” em outro lugar. Casos disso aconteceram e acontecem o tempo todo em todo lugar, inclusive nos mangás, mas esse não é exatamente o caso de NGNL. Tracing é uma cópia parcial, é quando o autor utiliza outra obra por baixo do papel para traçar por cima o contorno ou pedaços do traço original (ou qualquer outra forma de sobreposição).

Tracing está numa linha invisível entre copiar e usar de material de referência que, embora extremamente polêmico, é difícil de processar ou de criminalizar. De fato, tracing é usado o tempo todo com fotos, tanto no passado, como os casos de Slam Dunk e as fotos da NBA, tanto no presente, com o autor de Ajin utilizando fotos do ator Hugh Laurie.

  

No caso das fotos, entretanto, estamos falando da passagem entre um tipo de imagem real para um desenho e, por mais que haja a sobreposição e cópia de contornos, por causa disso existe uma diferença conceitual importante dentre os dois. É por isso mesmo que é até difícil provar se é de fato um tracing ou se o autor apenas usou de base, de material de referência. É possível também que o autor faça tracing de materiais que ele mesmo fez, como os artistas que usam fotos de cidade e locais tiradas por eles mesmos (um exemplo disso é, Boichi, o autor de Sun-Ken Rock).

Material de referência todos os mangakás usam, sério, especialmente os autores com aquele traço mais realista, é impossível de se desenhar os músculos em um cavalo sem ver um cavalo real via foto, esquema anatômico. Mas mesmo os autores de traços mais simples também usam para desenhar cenários, monumentos, cidades, animais ou o que seja, é necessário ter um modelo ou já ter pelo menos visto uma vez na vida. Existem até bonecos anatômicos e livros de material de referência para autores, o mais interessante que já vi foi um imenso de fotos de pessoas se despindo, literalmente mais de cem páginas de modelos tirando cada pedaço da vestimenta passo a passo. A importância do material de referência é tamanha que editoras pagam e bancam pesquisas e viagens ao redor do mundo para seus autores mais prestigiados.

Mas voltando ao ponto, é muito difícil de se destingir entre material de referência e tracing de foto, o autor tem que copiar muito e muitos detalhes para percebermos o tracing sendo usado. Só que nada disso é o caso de NGNL, o autor Yuu Kamiya e seu jeitinho brasileiro não faz tracing de foto, e aqui que mora a grande polêmica, ele faz tracing de ilustrações de outros artistas, sejam elas de mangás, ilustrações, fanarts e até capas de CD. Uma coisa é ter um traço parecido, como One Piece e Fairy Tail ou Naruto e 666 Satan, outra coisa é copiar na cara dura o contorno e posição na arte, parte da criatividade e design, de outras pessoas sem lhes dar nenhum crédito.

A polêmica do tracing em cima da arte de outros não está apenas no ato em si, mas na ideia de que para se fazer isso de forma abrangente o autor “trapaceiro” teria que ter uma biblioteca ou coletânea de imagens pré-selecionadas. Como assim? Pensa o seguinte, você já fez aquele trabalho ou projeto em que queria uma imagem ilustrativa? Quanto tempo você levou olhando imagens no Google até achar algo perfeito? Como blogueiros aqui da BBM, a gente sabe na pele como pode levar horas para achar aquilo que você precisa.

No caso de uma arte, a especificidade do que o autor precisa é imensa, se ele parasse e pesquisasse a cada imagem em fontes diferentes, o tempo que levaria tornaria o mangá impraticável. O que leva a acreditar que o autor na má fé colecione e vá guardando imagens que viu e tem interesse em usar no futuro previamente, o que com a internet é ridiculamente fácil, concorda? Essa constatação, somada ao uso excessivo e abrangente, mais a prática de tracing em si é o centro da polêmica em relação ao autor brasileiro.

Além dos problemas óbvios de autoria e direitos autorais que caem numa área difícil de se provar e processar, essas cópias ou plágios são consideradas trapaças e desrespeito, extremamente caçadas e criticadas pelo público. Por isso mesmo o caso de NGNL é super interessante, pois, como você verá abaixo, não há a menor dúvida que o autor pratica tracing, com sites dedicados a caçá-los e prová-los, mas o autor continua fazendo-o descaradamente, sem que a editora japonesa tenha tomado qualquer providência.

Aparente NGNL vende tanto e tão bem que a maioria está disposta a fazer vista grossa e deixar o autor fazer o que bem entende, gerando, com razão, enorme descontentamento entre os fãs e aficionados por mangá e autores plagiados. Isso vem auxiliado também do fato de ser tão difícil de se processar algo assim, além da batalha judicial longa e controversa, que pode não dar em nada, o retorno financeiro de um processo desse é quase nulo, já que é apenas um pedaço do direito criativo de uma de muitas imagens e conteúdos de um livro. O valor de royalties associado a algo assim não pagaria de forma alguma os anos de advogados e audiências, ainda mais contra uma editora de grande porte, no caso a Kadokawa.

Até o momento, publicamente, nenhum plagiado comprou a briga e o autor continua abertamente praticando tracing sem dó, cada vez mais na cara dura. Muito provável que o novo volume, o nono, que saiu recentemente no Japão também terá várias de suas imagens questionadas com o tempo.

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Mas bem, até aqui você já entendeu os problemas relacionados à prática de tracing e o que é, mas será mesmo que o autor pratica isso ou o pessoal está exagerando?

Questionamentos sobre Kamiya e tracing apareceram pela primeira vez em 2008, onde desenhos do autor na novel Itsuka Tenma no Kuro Usagi foram comparados a artes de D.Gray-man (abaixo). Na época, embora existisse semelhanças, não pareciam ser cópias, talvez no máximo ter usado de referência.

Em 2011, fãs começaram a notar várias semelhanças nas várias ilustrações do autor, criando a suspeita que ele criava seus desenhos em cima de outros. A suspeita deu à luz diversas descobertas.

No ano seguinte o autor lançou NogeNora, como NGNL é carinhosamente chamado pelos japoneses, e com isso veio mais uma enxurrada de casos de plágio. A partir daí, a cada novo volume, japoneses se unem numa caçada em busca de possíveis imagens copiadas.

Aí embaixo você verá uma lista extensa de casos e mais casos (comparando uma imagem do autor, na direita, a uma de outra fonte) onde há suspeita do uso de tracing, alguns são questionáveis, outros são inegáveis. Em alguns casos a sobreposição é tão absolutamente perfeita que a chance de ser mero acaso ou coincidência beiraria a chance de você ganhar na loteria seguidamente.

Se você prestar atenção nas datas (no Japão se escreve ano/mês/dia), dá para notar que as mais antigas parecem apenas ter sido usadas de referência, mas depois de um tempo a impunidade parece ter subido à cabeça do autor e as cópias começaram a ficar descaradas, especialmente em relação às mãos.

Clique em qualquer uma das imagens para ver um tamanho maior e mais detalhado.

Um último comentário, as descobertas e comparações são frutos dos esforços de várias pessoas, tais por sua vez foram recolhidas e divulgadas neste site. Não temos qualquer direito sobre as imagens ou responsabilidade pelas comparações e exatidão dos dados. Mais aparecem o tempo todo, de forma alguma temos a intenção de divulgar todos os casos imagináveis e existentes.


E esse foi o Desmistificando de hoje, a coluna semanal, lançada nas quintas-feiras, sobre o mercado e mangás brasileiros e internacionais. Você pode ver todas as outras postagens anteriores desta coluna aqui. Se você tem sugestões ou comentários utilize o formulário abaixo, são sempre bem-vindos! 🙂

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