Comentando o primeiro mangá da nova Conrad
Em 2016 era lançado no Brasil o décimo e último volume do mangá Gen Pés Descalços, de Keiji Nakazawa, e com ele se encerrava de vez a passagem da editora Conrad com os quadrinhos japoneses, uma das pioneiras na publicação deles no país. Ou era o que se imaginava…
Em junho de 2020, Cassius Medauar (que participara dos primeiros mangás da editora) retornou à Conrad com a missão de reestruturar a divisão de quadrinhos da empresa e trazer de volta a chama da editora. Medauar deixou claro para os fãs de mangás que inicialmente não haveria a publicação deles, mas que poderia ter no futuro. Entretanto, isso demandaria tempo, pois a editora precisaria mostrar o trabalho que está fazendo e buscar convencer os licenciantes que agora a empresa está em um novo momento.
Passaram-se três anos desde então e a editora Conrad conseguiu licenciar seus dois primeiros mangás nessa nova fase, dois mangás da editora japonesa Asahi Shimbunsha, Nas Montanhas do Terror, previsto para ser lançado em outubro, e A Noite da Princesa Uriko, A Manhã da Cinderela e Outros Contos Reimaginados, da qual falaremos agora (doravante, A Noite da Princesa Uriko).
A Noite da Princesa Uriko é de autoria de Daijiro Morohoshi e foi publicado no Japão nas revistas Nemuki e, em sua sucessora, Nemuki +, tendo seus contos compilados em um único volume.
Embora Morohoshi seja um tanto desconhecido no Brasil, ele é um famoso escritor japonês e possui uma prolífica produção, que vem desde os anos 1970. Sua estreia se deu com contos publicados na COM, revista fundada por Osamu Tezuka. Suas obras são tidas como únicas e é bastante admirado por seus pares, servindo de influencia para vários artistas. Ganhou, em 2000, o 4º prêmio Cultural Osamu Tezuka pela obra Saiyuu Youenden.
Em sua produção encontram-se obras longas como o próprio Saiyuu, mas também uma boa quantidade de contos. A Noite da Princesa Uriko faz parte dessa última, sendo uma coletânea de histórias baseadas em contos folclóricos japoneses e chineses, além de ocidentais, dos Irmãos Grimm. Por essa obra, Morohoshi ganhou o Prêmio Ministro da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia do Japão de Incentivo à Arte, em 2014.
No ocidente já houve obras suas publicadas anteriormente, como a série Shiori e Shimiko, na França, entre 2006 2008, mas mais recentemente ele tem ganhado atenção, com publicações na Espanha (Box, 2020), Itália (Ankoki Shinwa, 2020) e novamente França (Box, 2022-2023), de modo que estamos em um momento de conhecer esse interessante autor e é bom que o Brasil não ficou de fora…
OS CONTOS DE A NOITE DA PRINCESA URIKO
O mangá A Noite da Princesa Uriko possui cinco conto no total, a saber:
- Princesa Uriko e Amanojaku
- O quarto proibido
- O sapato da Cinderela
- O parceiro fuliginoso do Diabo
- Zhu Qing
Os dois primeiros são baseados em contos folclóricos japoneses, e os dois seguintes em histórias dos Irmãos Grimm. Já a última história é baseada em Contos Estranhos, de Liao Zhai. Tais informações são postas pelo próprio autor no posfácio do mangá.
UM POUCO DAS HISTÓRIAS
- O sapato da Cinderela
Para mim, a pior das histórias é “O sapato da Cinderela” e mesmo assim eu considero ela como muito boa. Essa é a terceira história do mangá é onde a gente entende (e vocês, leitores, entenderão) bem o que significa ser “contos reimaginados”. Daijiro Morohoshi pega o conceito da história da Cinderela e seus elementos (as irmãs más, os sapatos, o castelo, o príncipe) e faz uma história nova, totalmente diferente, apenas utilizando os personagens.
No caso, Cinderela trabalha no castelo e um dia perde seus sapatos, o que faz com que ela não consiga trabalhar nesse dia. A partir daí segue-se uma saga da garota em busca de seus sapatos (que não são de cristal) dentro do castelo. Não é uma história propriamente de contos de fadas, é uma história de cotidiano, mostrando a “aventura” da moça no local, com encontro com cavaleiros, dragões e pessoas misteriosas. É uma história com humor, bem divertida e calma.
Esse é o único dos contos dos quais a gente (e a maioria de vocês) conhece a história original de antemão, daí que ao ler os demais contos, é normal ficar com uma pulguinha atrás da orelha para saber como são as narrativas folclóricas originais de tão bons que as histórias de Morohoshi são. Afinal, as histórias feitas não são adaptações dos contos, são criações baseadas em alguns elementos deles, daí que tem coisas que são advindas de algum lugar, outras não e ficamos com vontade de saber o que é^^.
- Princesa Uriko e Amanojaku
O primeiro conto do mangá, “Princesa Uriko e Amanojaku” apresenta a história dos dois personagens do título, Uriko, uma jovem princesa que tem como missão prever a colheita e outras coisas para o bem do seu povo, e Amanojaku, um ser da floresta, um youkai, um demônio malvado.
Um dia Amanojaku entra na casa de Uriko querendo aprontar e, para a sua surpresa, esta consegue vê-lo. A partir daí os dois começam a ir toda a noite para a floresta onde mora o Amanojaku, pois Uriko deseja ouvir a conversa dos seres da floresta por uma certa razão…
Essa é uma história de fantasia daquelas clássicas, com diversos elementos comuns, como seres sobrenaturais, deuses, misticismo, dentre outras coisas. É uma narrativa com um pouco mais de uma aventura e uma trama bem recheada, até mesmo com amor.
Achei essa história incrivelmente boa por apresentar muitas coisas de maneira velada ou não ditas, que se percebe pelas expressões faciais ou pelo contexto das decisões da história. O final deixa um clima de “quero mais”, mas acho que ter terminado dessa forma acabou sendo muito benéfico para a trama, pois apresenta o desfecho que talvez se esperaria da Princesa Uriko.
Como comentamos mais acima, a leitura das histórias nos leva a querer conhecer os contos originais. Não consegui encontrar para a leitura alguma versão da lenda de Urikohime, mas vi uma animação na Crunchyroll (Folktales from Japan) no qual um dos episódios tem justamente a história dela, e o apresentado no anime batia com as descrições da Wikipedia de uma das versões do conto. Assim, a gente conseguiu ver bem o modo como Daijiro Morohoshi criou o seu conto, mantendo apenas pouquíssimos elementos e criando uma história totalmente nova e muito inovadora.
Dito de outro modo, eu gostei bastante da história de Morohoshi, mas após conhecer o conto folclórico original, eu gostei muito mais do que o mangaká criou, pois o que eu achava ser uma parte do original era criação dele^^.
Vale mencionar que é muito interessante conhecer os contos originais, pois aí você percebe diversas referências que poderiam passar despercebidas. Em diferentes versões da lenda de Urikohime, por exemplo, ela é uma boa tecelã, de modo que quando aparece o tear no mangá, a gente vê a ligação com a lenda, o que mostra um inteiro conhecimento dos contos e um grande modo de utilizá-los por parte do autor.
- Quarto Proibido
Esse é um dos melhores contos para quem gosta de obras de loops temporais, como o filme Feitiço do Tempo. Na verdade, ele não apresenta um loop temporal, mas sua estrutura de narrativa é certamente semelhante, de modo que você, leitor, ficará fascinado pela ambientação e pelo que está acontecendo vez por vez. Não podemos dizer nada mais para não estragar sua experiência.
Só vale dizer que novamente a gente fica com a pulga atrás da orelha para saber como era o conto japonês original do quarto proibido e esse é possível encontrar facilmente para a leitura (nas traduções brasileiras se chama O Quarto que Não se Podia Ver ou Miruna no Zashiki, no original).
Na versão a que tive acesso, o elemento básico mantido por Morohoshi é apenas o fato de haver um quarto proibido e a presença de uma mulher. Todo o resto é uma baita criatividade do autor. Particularmente prefiro a reimaginação do mangaká, embora não desgoste do conto original.
- O parceiro fuliginoso do Diabo
“O parceiro fuliginoso do Diabo” é uma narrativa baseada em um dos contos dos Irmãos Grimm, mas um conto mais desconhecido, do qual eu ainda não tinha ouvido falar (clique aqui). Assim como as outras histórias, Morohoshi pega os elementos principais e cria uma história nova a partir disso.
No caso, um homem volta do inferno após trabalhar lá por sete anos e tem um encontro com uma moça. Após um certo acontecimento, a moça acaba parando no inferno, onde também começa a trabalhar.
Dentre todos os contos da obra, esse é o que mais parece um conto de fadas realmente, pois é o que mais se aproxima da história original. O grande destaque aqui e que faz a história de Morohoshi se sobressair é o drama da mocinha e o aspecto mais particular da ida dela para o inferno. O conto dos Irmãos Grimm é muito bom, com uma baita história e um final feliz, mas o de Morohoshi ainda assim se sobressai pela engenhosidade.
- Zhu Qing
“Zhu Qing” é o conto mais romanceado do mangá, com uma narrativa mais “apresentada”, mais “narrada” mesmo. Além de elementos de fantasia comum aos outros contos, tem aventura, investigação, busca por vingança, etc, etc, etc. É uma historieta primorosa, daquelas que as páginas vão passando, passando e você vai mais se apaixonando pela história, pelo suspense, etc.
Na obra, o protagonista acaba sendo salvo da morte por um rei e é transformado em um corvo. Nesse novo trabalho (sim, é um trabalho) ele conhece uma moça que está buscando vingança por conta de um certo acontecimento. Compadecido, ele também começa a investigar por conta própria e coisas acontecem…
Esse foi o único conto que eu não consegui ter acesso a nada da obra original, daí que é o único que não terá uma comparação. De todo modo, é uma história ótima e que vale por si mesma, independente do quanto de originalidade ou não há nela.
OPINIÃO GERAL
Como se vê, eu gostei de todos os contos presentes na obra e acho que o nível deles é bastante alto, ao ponto de o pior dos cinco eu classificar como “muito bom”. Os demais estão um nível acima, na categoria do excelente, seja por um motivo, seja por outro.
Achei que o autor conseguiu criar narrativas muito interessantes e contá-las de um jeito muito próprio, algumas de uma maneiras bem distante de outros autores de contos curtos publicados no Brasil (Junji Ito, Inio Asano, etc), quase novelesco ou romanceado (no sentido literário). O final de alguns deles poderia ser melhor, no sentido de ter uma página ou duas a mais para a sua conclusão, mas mesmo assim acho que ficaram ótimos no todo.
Importante enfatizar uma coisa: os contos não são de terror. Todos os mangás publicados no Brasil advindos das revistas Nemuki e Nemuki + têm sido obras de terror (sobretudo de Junji Ito), entretanto os contos de Morohoshi não fazem parte dessa linha. Um deles até pode triscar nesse gênero, mas é mais fantasia. Aliás, as histórias do mangá são todas de fantasia mesmo, com um pouco de aventura, embora uma delas seja mais de cotidiano.
De mais a mais, talvez alguns não gostem da arte do autor por ser meio simplória na questão dos rostos dos personagens, com um aspecto mais “”antigo””, mas acho que no geral a maioria deve gostar, pois a composição de ambientes é bem bonita, os cenários são bem detalhados, etc, etc, etc.
Não acho que seja “o melhor mangá da história”, mas sem dúvida é uma coletânea de contos excepcionais e muito bem feitos. Acho que é um título que todo mundo que comprar irá gostar bastante.
A versão digital (ebook) já foi publicada. A versão impressa está prevista para sair na próxima semana.
Ficha Técnica
Título Original: 瓜子姫の夜・シンデレラの朝
Título: A Noite da Princesa Uriko, A Manhã da Cinderela e Outros Contos Reimaginados
Autor: Daijiro Morohoshi
Tradutor: Edward Kondo
Editora: Conrad
Número de volumes no Japão: 1 (completo)
Número de volumes no Brasil: 1 (completo)
Dimensões: 13,5 x 20,5 cm
Miolo: Papel Pólen Soft 80g
Acabamento: Capa cartão com sobrecapa
Páginas: 232
Classificação indicativa: não há
Preço (impresso): R$ 59,90
Preço (digital): R$ 42,90
Onde comprar: Amazon (impresso) / Amazon (digital)
Sinopse: E se as profecias da Princesa Uriko fossem fofocas? E se a Cinderela fosse procurar seus sapatinhos perdidos no castelo do príncipe? E se as pessoas que servissem a um certo templo na China virassem corvos de verdade? A Noite da Princesa Uriko, a Manhã da Cinderela e outros contos reimaginados é uma coletânea que pega contos folclóricos japoneses, chineses e histórias dos Irmãos Grimm e os reimagina em mangás com tramas um pouco mais “realistas”, mas ainda cheias de fantasia e surpresas. O vencedor do Prêmio Ministro da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia do Japão de Incentivo à Arte chega agora no Brasil pela Conrad.
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