Resenha: “A Tragédia da Princesa Rokunomiya”

A diversão, o tema sério e a falta de entendimento

No final dos anos 1970, Kuniko Tsurita publicou um mangá no Japão chamado Rokunomiya Himeko no Hideki (A Tragédia da Princesa Rokunomiya) que consistia de uma coletânea de contos publicados pela autora na famosa revista Garo. Um dos contos, inclusive, chamava-se justamente Rokunomiya Himeko no Hideki, daí o título^^.

ROKUNOMIYA HIMEKO NO HIGEKI © by Kumiko Tsurita / All ridght reserved

O mangá está esgotado no oriente há muitos e muitos anos e só era possível comprar usado em sebos. Em 2010, porém, a editora Seirin Kogeisha lançou uma grande coletânea de contos da autora chamada de FlightFlight reunia todos os contos presentes em Rokunomiya, juntamente com diversos outros contemplando uma ampla gama de histórias feitas por Tsurita.

FLIGHT TSURITA KUNIKO SAKUHINSHUU © 2010 by Kuniko Tsurita / SEIRIN KOGEISHA

No ocidente, Flight foi lançado na Itália em 2019 pela editora Coconino Press (com o nome de Flight) e na Suíça em 2021 pela editora Atrabile (com o nome de L’envol / Voo em francês). Nos Estados Unidos, por sua vez, a editora Drawn & Quarterly lançou uma coletânea chamada The Sky Is Blue with a Single Cloud, baseada em Flight, mas desfalcada de uma dezena de contos importantes. 

Capa Italiana / FLIGHT TSURITA KUNIKO SAKUHINSHUU © 2010 by Kuniko Tsurita / SEIRIN KOGEISHA
Capa Suíça / FLIGHT TSURITA KUNIKO SAKUHINSHUU © 2010 by Kuniko Tsurita / SEIRIN KOGEISHA

A editora Veneta licenciou justamente Flight, mas resolveu publicá-lo com o nome de A Tragédia da Princesa Rokunomiya, em referência ao conto de mesmo nome e ao mangá lançado quando a autora era viva. Apesar do título diferente, a versão brasileira é completa, com todos os contos presentes nas versões japonesa, italiana e suíça.

A Garo, para quem não sabe, foi uma revista de destaque no cenário do mangá, acolhendo diversos artistas e estilos que se afastavam do modelo dos quadrinhos tradicionais, propondo algo mais experimentativo e alternativo. Era um lugar onde vários artistas podiam se expressar e Kuniko Tsurita foi a primeira mulher a publicar regularmente nela.

Dispostos quase em ordem cronológica (com historietas datadas de 1965 até 1981), os contos de A Tragédia da Princesa Rokunomiya nos mostram a amplitude da autora e o seu estilo diverso (com muito humor, reflexão e denúncia social) que fizeram com que ela ganhasse destaque e importância.

Desde os primeiros contos podemos ver a autora criticando os costumes sociais, a maneira de agir do ser humano em geral, a política e tudo mais. As duas primeiras histórias, inclusive, são totalmente taxativas, incisivas nesse sentido, colocando o dedo na ferida da humanidade, falando dos malefícios da busca por riqueza e da guerra. Tsurita discute que o conhecimento e a suposta inteligência humana na verdade está nos matando aos poucos, levando a humanidade à extinção.

A autora volta a tocar nesses pontos em outras história futuras, como em uma, de 1974, em que é mostrada toda a beleza e a calma de um dia, que poderia ser aproveitado por todos os humanos, não fosse uma certa nuvem no céu, em uma alusão clara e manifesta aos horrores da guerra e da ameaça nuclear que existia na Guerra Fria.

A Tragédia da Princesa Rokunomiya não poupa ninguém, questionando até mesmo o modo de viver e o conformismo de todas as pessoas. Um exemplo disso, acontece em um certo conto em que a personagem protagonista é chamada de “gente de bem”, o que gera uma reação por parte dela, não gostando de ser chamada assim.

No contexto, “gente de bem” seria aquela pessoa comum, que vive a sua vida normal, sem ser um “arruaceiro”, sem ser uma pessoa que questiona o modus operandi da sociedade. Nessa cena (imagem abaixo), Tsurita deixa clara a sua crítica à população que não reage e não luta por mudanças e por uma sociedade melhor.

As histórias da autora, entretanto, são bem diversas entre si, mas um ponto marcante em várias delas é o uso do nonsense. Algumas vezes, o nonsense é usado apenas com intenção humorística, sem nada nas entrelinhas. Outras vezes, porém, busca passar uma mensagem por meio da estranheza, semelhante ao realisto fantástico de autores como Gabriel Garcia Márquez e Mia Couto.

Quando vemos o uso do humor puro e simples, ele lembra muito aquele estilo disney/tezukiano em que uma coisa é dita ou acontece e, em seguida, se rebate de uma maneira completamente diferente e inesperada. Em um dos primeiros contos, por exemplo, a personagem protagonista é a própria autora e, devendo dinheiro, recebe a visita de seu credor. Muita coisa é dita e falada e o personagem credor o tempo todo fala do pagamento, dando um efeito cômico muito bom.

Quando o nonsense é usado como recurso para passar uma mensagem a obra também nos mostra algo genuinamente bom. Há um certo conto excepcional em que a protagonista é apenas uma voz (alguém ou alguma coisa que ficou invisível) e há toda uma discussão sobre a presença dela, tudo isso para mostrar que não se pode ficar calado, que não falar nada é desaparecer, é deixar de existir.

Novamente é uma clara alusão ao fato de que precisamos questionar o mundo, falar o que pensamos, o que sentimos e tentar mudá-lo. Isso é algo bastante repetido por Kuniko Tsurita em diversos contos ao longo da obra, seja claramente (como na imagem abaixo) seja simbolicamente.

Há muito mais para se falar sobre A Tragédia da Princesa Rokunomiya e daria para escrever sobre diversos outros pontos e até detalhar cada uma das histórias, mas isso acabaria alongando esse texto em demasia. Entretanto, há ainda uma coisa muito importante a se falar sobre a obra e não é coisa boa…

Se, até aqui, descrevemos os pontos positivos, não podemos deixar de mencionar os pontos negativos do mangá. De fato, a obra da autora é bem interessante, consegue nos fazer rir e pensar aqui e ali, mas um punhado de histórias dela são de difícil compreensão, tanto no campo intelectual (o que ela quis dizer com essa história?), quanto no campo da história (o que está acontecendo nesses quadrinhos?).

Sim, é exatamente dessa forma. Em alguns contos a gente vai passando os quadrinhos e não entende o que a história quer nos falar. Em outras a gente não entende o que está acontecendo. Em mais outras, nem a sequência dos quadrinhos faz sentido: em um quadro acontece uma coisa, em outro outra, no terceiro mais uma coisa e não faz sentido uma coisa com outra. Quando vamos ver, a história acabou e você ficou confuso com o que aconteceu. Mesmo se a gente volta para buscar entender o que aconteceu parece difícil e chega um momento em que a gente desiste e parte da frente.

Esses contos ficam parecendo aqueles poemas com muitos simbolismos em que apenas algumas pessoas conseguem compreender e analisar. Se nesses poemas a gente (pessoas comuns) vê apenas palavras e frases que não fazem muito nesse sentido, e em alguns contos de Tsurita são os quadrinhos e os desenhos que carecem de acepção.

Isso é ruim porque a gente lê uma história boa, quer continuar na mesma pegada e, de repente, vem algo que não conseguimos compreender, rompendo o ritmo da leitura. Em alguns momentos chega a ser enfadonho e você precisa largar o volume e voltar depois.

***

Mas então, você deve estar se perguntando, entre as coisas boas e as ruins, o que se sobressai? Ou, dito de outro modo, o blog BBM recomenda ou não recomenda o mangá? Bom, a recomendação ou não do título ficará para depois, pois primeiro é preciso comentar sobre a edição física e o preço, e isso é algo que influencia na nossa avaliação.


A EDIÇÃO BRASILEIRA


A edição brasileira de A Tragédia da Princesa Rokunomiya veio no formato 16 x 23 cm e em capa dura com 504 páginas. Trata-se de um tamanho menor que Chi’s Sweet Home e os mangás do selo Tsuru da Devir, mas maior que os mangás da Pipoca & Nanquim, sendo um livro grandão e grosso, que facilmente se destaca na estante.

Particularmente gosto bastante de mangás em capa dura, então não tenho o que reclamar da escolha para o material. De igual modo, também gosto bastante do papel utilizado no miolo da edição. Trata-se do pólen bold 90g (o mesmo usado em Nausicaä do Vale do Vento, Ping Pong e nos mangás da Pipoca & Nanquim), sendo ótimo para a leitura, não cansando os olhos e praticamente não apresentando transparência.

Capa
Quarta-capa (parte de trás do mangá)
Lombada

Se eu gosto da escolha do material, o mesmo não se aplica à estética. Tanto a capa, a lombada e quarta-capa (imagens acima) me parecem muito feias, com uma escolha de cores e elementos bastante equivocada. Os textos na quarta-capa preenchem demais e juntamente com as duas cores causam um desconforto visual.

O mesmo ocorre com a capa. Embora ela seja mais sóbria, a união das cores e das imagens não fez ficar bom. Se eu desconhecesse a obra e visse em uma livraria, certamente essa estética utilizada me afastaria da compra. Em minha opinião, a lombada é a menos problemática. Embora também tenha ficado desagradável, dá para perceber a intenção de quebra e continuidade que tem muito a ver com a obra (para o bem e para o mal).

Capa interna (1)
Capa interna (2)
Primeira página depois da capa interna
Última página antes da segunda capa interna

Já as imagens internas (acima) eu gostei mais. Elas parecem bem mais pensadas, bem mais assertivas e chamativas para a obra, deixando tudo mais limpo e bonito. Aquela imagem das mãos, por exemplo, daria uma capa bem melhor.

Mas esse comentário sobre a estética da capa é apenas uma questão de gosto pessoal. O que importa é que o acabamento está bom e (à exceção de um único problema interno, uma caixa de texto largada no meio de uma imagem logo na página 8) o trabalho da editora na obra (tradução, revisão, etc) também está bastante satisfatório. O problema é que o mangá custa R$ 109,90.

Só pelo preço já dá para saber que o mangá não é para todo mundo. Entretanto, uma boa história, um bom mangá, vale a tentativa de juntar dinheiro para comprar, ainda mais sendo volume único. Só que A Tragédia da Princesa Rokunomiya não é exatamente um suprassumo de título. Como foi comentado antes, há contos de difícil compreensão e isso faz com que exista ressalva em recomendar o título.

Se você é rico, bem de vida, e/ou pode arcar com produtos mais caros, não lhe fará mal investir nessa obra, pois terá contos muito bons para você ler. Se não é o seu caso, talvez seja melhor guardar o dinheiro para um outro título, pois mesmo em promoção o preço dele continuará bem salgado. Então não é que eu des-recomende o mangá (acho que ele é divertido, é bem diferente do usual, tem contos muito bons e eu acho que todo mundo deveria ler história fora do comum), só que o preço dele não ajuda e me faz ficar desconfortável em indicar para todos.

Resumindo: tem dinheiro? Compra. Não tem dinheiro? Não esquenta, há outros mangás no mercado, não precisa se endividar para ter esse em específico.


Ficha Técnica


Título Original: フライト つりたくにこ作品集
TítuloA Tragédia da Princesa Rokunomiya
Autor
:  Kuniko Tsurita
Tradutor: Alice Nogami
Editora: Veneta
Número de volumes no Japão: 1 (completo)
Número de volumes no Brasil: 1 (completo)
Dimensões: 16 x 23 cm
Miolo: Papel pólen bold 90g
Acabamento: Capa dura
Classificação indicativa: não disponível
Preço: R$ 109,90
Onde comprarAmazon 


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2 Comments

  • Lucas

    A única coisa que me vem a cabeça a ler o nome desse mangá é o Cuponomia kkk

  • Inominável Ser

    Como leitor de obras fora dos padrões, vou adquirir esta. Muito obrigado pela Resenha.

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