Continuação daquele excelente mangá
Em março de 2020, a editora Todavia publicava no Brasil o mangá Dementia 21, de Shintaro Kago. Era o primeiro mangá do autor no país e o primeiro (e até o momento único) da editora Todavia. O título viera num formato grande (17 x 24 cm) com miolo em papel offset 120 g (uma gramatura bem alta, visto que as demais editoras de mangás usam no máximo o 90g) e capa cartão com orelhas. Era baseado na edição americana da editora Fantagraphics, mas foi traduzido diretamente do japonês…
Dementia 21, na verdade, foi inicialmente publicado no site Comic Loud, da Book Loud, tendo mais de 30 capítulos e sendo compilados em 7 volumes de poucas páginas (variando entre 86 e 100). Essa publicação ocorreu apenas em formato digital, não existindo uma edição impressa no Japão (até onde sabemos).
Em 2018, porém, a obra ganhou uma edição física pela primeira vez no mundo todo, mas foi nos Estados Unidos. A editora americana Fantagraphics Books resolveu realizar uma coletânea de algumas histórias e escolheu 17 delas para publicar em um volume de quase 300 páginas. Anos depois em fevereiro de 2020, a editora lançou um segundo volume, contendo as histórias faltantes.
No Brasil, a editora Todavia licenciou o mangá em 2019 (quando só havia um volume) e o lançou apenas em 2020, pouco depois do segundo volume ter saído nos Estados Unidos. Como cada história são meio-que independentes, não havia a necessidade de publicar o segundo número, mas a Todavia o trouxe mesmo assim e o lançou recentemente no Brasil e é desse segundo volume que vamos falar aqui…
BACKGROUND DA HISTÓRIA
Dementia 21 acompanha uma cuidadora de idosos chamada Yukie Sakai e as aventuras e desventuras dela com seus pacientes para lá de estranhos, existindo eventos sobrenaturais, horrorosos, grotescos, dentre outros.
Embora possa existir uma certa continuidade narrativa, cada capítulo é independente, com uma história com começo, meio e fim bem definido. Assim, em um capítulo acontece alguma coisa, essa coisa eleva em grande escala, mais coisas acontecem e ele termina ali mesmo.
Algumas vezes personagens se repetem e o acontecimento de um capítulo é relembrado em outro, mas nada muito diferente disso, assim cada historinha é praticamente independente mesmo.
DEMENTIA 21 E SUA CRÍTICA SOCIAL
O primeiro volume de Dementia 21 foi o que chamamos de um suprassumo da comédia nonsense. É uma daquelas obras que parecem indicar um título de terror, com um suspense aqui e ali e umas caras sombrias de vez em quando, mas o que se passa, na verdade, é apenas um humor ácido, crítico, que usa das caricaturas e do sem sentido, para criar uma história bem humorada e que nos faz pensar em alguns momentos.
A gente se diverte bastante ao mesmo tempo em que vemos uma crítica social, que se refere ao modo como a nossa sociedade (no caso, a japonesa, mas vale também para a brasileira) trata os idosos, como inúteis, dispensáveis, etc, etc, etc. E isso é algo que se mantém no segundo volume de uma forma muito brilhante.
Em Dementia 21 #02, o autor utiliza-se de elementos reais da sociedade japonesa para criar histórias únicas e com críticas fortes e impactantes. Duas se destacam. Em uma delas, o autor usa o conhecido fato de que muitos idosos cometem furtos para poderem ser presos (que é algo que reflete muito da sociedade nipônica e do modo como tratam os mais velhos, a ponto de terem que fazer isso para conseguirem sobreviver), criando uma história em que os presídios estão super-lotados e o governo começa a maquinar coisas para impedir que eles sejam presos.
A história deixa bem claro que o governo não estaria preocupado em resolver o bem estar da população idosa, atacando o problema e não a causa. Ou seja, em vez de criar boas condições para a população mais velha (uma melhor previdência social, por exemplo), eles preferem criar meios para que eles não fossem em cana, o que – obviamente – termina por causar mais problemas ainda.
Em outro conto, o autor utiliza o fato de alguns idosos morrerem sufocados ao comer uma certa comida japonesa e usa isso como mote para uma história em que os familiares utilizam desse alimento para se livrar dos seres indesejados (os mais velhos), de uma maneira imperceptível, como se fosse um simples acidente. Diferente da outra história em que a crítica vai para o governo, aqui Shintaro Kago coloca os próprios familiares como os vilões, afinal muitos não desejam cuidar dos seus parentes idosos e parecem ter uma aversão a tê-los por perto.
Esses dois pontos elencados mesclam-se bastante, com o autor deixando claro que o problema se encontra em diferentes esferas (pessoal, familiar e governo) e que nenhuma delas deseja de fato uma melhora, deseja apenas se livrar do jeito mais cômodo para eles e não pensando no bem estar das pessoas que vieram antes de nós.
Alguns dos contos fogem a esse clima, apresentando maluquices das mais diversas, mas sempre com uma crítica, mesmo que muitas delas pareçam imperceptíveis. Em um conto, por exemplo, o próprio autor é o personagem principal e nele ele é obrigado a mudar o seu mangá, com vistas a uma possível adaptação em anime. O que parece ser apenas uma meta-história sem algo mais, na verdade visa a deixar em evidência que a própria indústria tem padrões estabelecidos e a ideia de colocar idosos como personagens não é bem vista.
O mais tocante nesse assunto (de maluquices diversas) é o conto final que mostra uma tentativa total de acabar com a população idosa, mostrando uma ofensiva genocida do governo contra eles. Esse é um conto interessante, pois diz explicitamente que qualquer pessoas (qualquer mesmo) pode, de repente, desejar o fim dos idosos, pela pura e simples questão do dinheiro…
***
Como um todo, esse segundo volume tem histórias menos ácidas e com menos humor do que o primeiro, mas ainda assim consegue passar mensagens importantes e divertir. Dementia 21 é um mangá que realmente merece bastante reconhecimento, pois é um título agradável de se ler e toca em pontos sociais importantes, não só da sociedade japonesa, mas da nossa também.
O único problema dele é o preço, pois R$ 99,90 é impeditivo para muita gente.
Essa resenha só foi possível graças a um exemplar cedido a nós pela editora Todavia, a quem agradecemos a parceria
Ficha Técnica
Título Original: Dementia 21 (ディメンシャ21)
Título: Dementia 21
Autor: Shintaro Kago
Tradutor: Drik Sada
Editora: Todavia
Número de volumes no Japão: 2 (completo)
Número de volumes no Brasil: 2 (completo)
Dimensões: 17 x 24 cm
Miolo: Papel Offset 120g
Acabamento: Capa cartão com orelhas
Páginas: 280
Classificação indicativa: Não há
Preço: R$ 99,90
Onde comprar: Amazon
Sinopse: Neste segundo volume, Shintaro Kago parte de situações blasfemas e doentias para investigar o consumismo, o abandono, a paranoia, a família e a política. Dementia 21 é um passeio pela mente de um dos artistas mais originais da história dos mangás, e um caleidoscópio de horror e graça que jamais para de surpreender. Ao explorar os cantos mais obscuros da cultura de um país, o autor revela o que há de insano e divertido onde nunca nos preocupamos em olhar.
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