Resenha: “Yarichin Bitch Club #01”

O polêmico

As obras de ficção – como todas as obras de arte – podem nos fazem pensar sobre a realidade e moldar o nosso olhar sobre algum tema ou situação. Por isso mesmo, elas não precisam se prender ao comum e ao normal. Elas não precisam se ater à realidade, à moral ou mesmo aos aspectos criminais. Isto é, uma obra de ficção pode explorar diversos pontos que na vida real não consideraríamos correto em qualquer hipótese. Uma das grandes funções da ficção, inclusive, é justamente transgredir, ultrapassar o que é considerado correto.

Quando determinados temas são abordados em obras de ficção, eles terminam por não causar muito rebuliço e acabam aceitos como normais, mesmo que na vida real ninguém apoiasse tal ou qual coisa. Obras envolvendo assassinatos e vinganças, por exemplo, quase nunca são alvo de críticas negativas e praticamente todo mundo gosta. Entretanto, quando os temas envolvem tabus, como o sexo, a coisa muda de figura e as pessoas esquecem um pouco o aspecto da ficção e o atrelam demais à realidade.

Isso é não é algo de agora, não é uma onda conservadora que surgiu nos últimos anos, é algo histórico e com relatos engraçados e constrangedores ao longo do tempo.

O escrito francês Gustave Flaubert, por exemplo, chegou a ser chamado ao Júri para que revelasse quem era a mulher adúltera que protagonizava seu livro Madame Bovary, tamanho escanda-lo que a obra provocou na época e que fez as pessoas acharem que era uma história real. Vladimir Nabokov, por sua vez, teve muitas dificuldades para publicar o livro Lolita, por ter uma temática “de pouca moral” (um pedófilo narra o seu “amor” por uma menina de 12 anos) e mesmo após a publicação a obra foi alvo de muitas críticas e tentativas de censura, chegando a ser tirado de circulação em vários países.

https://biblioteca.pucrs.br/curiosidades-literarias/voce-sabe-quem-disse-madame-bovary-sou-eu/

Casos como esse envolvendo escritores e censura por parte da ala conservadora existem aos montes, mas também existem casos envolvendo escolas e professores. Na Amazon, na página do livro O caderno rosa de Lori Lamby, há o relato de uma professora que passou a obra para seus alunos de 3º ano do Ensino Médio, eles se interessaram pela obra, falaram dela, outros alunos se interessaram e isso levou a professora a ser chamada na diretoria. Em vez de receber os parabéns por ter feito os alunos se interessarem pela leitura, ela recebeu uma advertência e que poderia ser demitida se continuasse com o livro.

O livro em questão é de autoria de Hilda Hilst (uma das maiores escritas brasileiras) e ele é narrado por uma menina de 8 anos que se prostitui e gosta disso (e do dinheiro que vem disso). É um livro sensacional, bastante acido, crítico à sociedade, mas por ter essa premissa acaba sendo alvo de repressão por quem não entende a função da literatura e muitos acham que o título é uma ode à pedofilia.

Um outro caso – e que até foi noticiado – é de uma versão em quadrinhos de O Diário de Anne Frank que os pais desaprovaram o uso numa escola em Vitória por conter a palavra vagina e um ou outro conteúdo relacionado à sexualidade. Esse caso é exemplar, pois o quadrinho em si não tinha nada demais, mas só pelo fato de citar coisas “tabu” (e que, na cabeça dos pais, não deveria ser lido por seus filhos) gerou um alvoroço.

Mas, bem, pais e escolas acabam por ser conservadores mesmo, na maioria das vezes, então casos como os de cima acabam não surpreendendo tanto. Mas o público de mangás costuma ser mais aberto e compreender melhor as histórias, ou pelo menos era isso o que eu pensava…

Yarichin Bitch Club é uma experiência intensa, mas o que mais chamou a atenção nesse mangá foi algo fora do texto: o tanto de ódio que a gente viu em relação a ele desde que foi anunciado. Claro, muitos gostaram, muitos aclamaram, mas esse título em específico ficou marcado pelo grande desgosto de uma parcela considerável do público consumidor de mangás.

Eu já tinha ouvido falar dele antes do anúncio, já sabia de sua fama de problemático e de explícito, mas o nível das críticas em relação a ele depois do anúncio foram maiores do que eu imaginava.

Mas o que a obra de Ogeretsu Tanaka teria de tão ruim? O que ela fazia em seu mangá que fazia tanta gente desgostar desse título ao ponto de achar horrível a publicação dele no Brasil? Foi com dúvidas como essa que eu comecei a ler o primeiro volume desse mangá e eu já estava preparado para o pior…

…e não tem nada ali que eu já não tivesse visto em diversas outras obras antes, sejam elas japonesas, sejam ocidentais. Mas vamos por partes.

Como é a história? Como é o mangá?

A sinopse do mangá mostra claramente a bizarrice que é o título desde o começo. Um jovem – o protagonista da história – se muda e tem que começar a estudar num internato masculino e, nesse local, ele é obrigado pelas normas a participar de algum clube, no qual ele escolhe o clube de fotografia. O problema é que esse clube é só uma fachada, pois na verdade aquele lugar é o Yarichin Bitch Club, um clube de sexo, em que seus membros fazem sexo com outros garotos da instituição (e até com professores!!!).

E piora. Toono, o nosso protagonista, é avisado de que se ele não transar com alguém dentro de um mês, ele terá que participar obrigatoriamente de uma “””orgia”””… Nisso, veremos então o jovem passando os seus dias na escola com medo da orgia e sem qualquer vontade de transar com alguém do mesmo sexo, ao mesmo  tempo em que ele presenciará as coisas mais estapafúrdias no seu clube e com seus outros colegas de escola.

O primeiro volume, então, é repleto de situações esquisitas, falas problemáticas e um monte de outras coisas que a gente poderia olhar com um profundo desgosto. Entretanto, existe uma coisa que coloca uma distância disso, O TOM. O tom da obra é mais para o lado do humor e do erótico, deixando a parte séria de lado (pelo menos parcialmente nesse número inicial). Existe, sim, uma historinha, existe, sim, um desenvolvimento (paixões aqui e ali), mas o todo da obra é feito para rir, com diversas cenas de humor, além do lado erótico com inúmeras (inúmeras mesmas) cenas impublicáveis (o mangá meio que a cada par de páginas decide te chocar com uma cena erótica bem explícita^^).

O mangá é um BL que se utiliza de elementos bem pesados (possível estupro, adolescentes transando com adultos) ou tabus (adolescentes transando), apresentando diversas cenas eróticas, mas tudo regado num tom mais humorístico ou não-sério, tanto pelo modo em que as coisas são apresentadas, quanto pelos personagens, muito deles extremamente caricatos.

Assim, o título (que antes de ler eu imaginava ser uma espécie de O caderno rosa de Lori Lamby, mas sem a parte da crítica social) se mostrou uma obra comum e normal, sendo uma interessante surpresa, com uma história realmente maluca (não vamos negar), personagens esquisitos, um possível romance e tudo mais regado a um clima mais humorístico. 

Yarichin Bitch Club é um mangá em certo ponto pesado, mas ousado e divertido.

As críticas e o problema da ficção.

E, sendo assim, a minha primeira reação ao terminar a leitura do primeiro volume foi não entender todo o auê em torno desse mangá. Sim, pois, não é como se Yarichin Bitch Club tivesse inventado a roda e feito algo nunca antes visto para ter tantas críticas negativas. Afinal obras em que adolescentes transam existem aos montes, obras em que adolescentes transam com professores também não é novidade, ser super explícito também não, etc, etc, etc.

Postei isso no Twitter e uma das primeiras respostas que eu recebi meio que elucidou uma parte da questão: a popularidade do mangá aliado ao fator “anti-fujoshi” fez ele virar um saco de pancadas das pessoas. Os comentários de outras pessoas meio que confirmaram exatamente isso.

Mas, claro, existe uma outra parte, a dificuldade de separar realidade e ficção, além da interpretação da ficção, especialmente quando existem tabus e gatilhos envolvidos.

Yarichin Bitch Club é uma grande galhofa e toda a sua estrutura é feita para não se levar a sério, mostrando de antemão que nada daquilo lá é real. Você pega os personagens do “clube de fotografia” e você vê que todos são uns completos pirados da cabeça (uns mais do que os outros) e a única sanidade ali presente é o protagonista da história que se vê no meio de uma situação que ele jamais esperava estar e critica tudo aquilo, mostrando, por exemplo, que a “””orgia””” é algo errado.

Uma das críticas à Yarichin, por exemplo, é o fato de o protagonista ser ameaçado de estupro (a orgia que citamos antes) desde o início da obra e o modo como isso é tratado, com galhofa, como brincadeira, sendo que (na vida real) é um assunto sério, um crime grave, uma das piores formas de violência. A questão é que é justamente o tom da obra que tira toda essa parte extra-ficção, pois o que está acontecendo na obra não é para convergir com a realidade. A obra não está passando uma mensagem de que é “estupro é algo menor” ou de que “estuprar é legal”, ela está mostrando um ambiente à parte (uma sociedade que existe dentro de uma escola) que é totalmente maluco e que não condiz com o mundo real. E, mesmo assim, e essa é uma parte que não pode ser ignorada, a obra também mostra o poço de sanidade que é o protagonista e, como dito antes, ele é o total responsável por mostrar que isso não é legal.

Claro que isso é debatível, existem níveis e níveis, mas creio que fica muito mais claro quando a gente compara a questão do mangá com outros títulos recentes, como o também BL Dakaichi – O Homem Mais Desejado do Ano. Em Dakaichi um dos protagonistas ama o outro e o estupra. O outro termina por amar o primeiro. Qual a mensagem que Dakaichi está passando? Creio não ser difícil de ver: “estupre alguém que você ame e essa pessoa se apaixonará por você”.

Tanto Yarichin, quanto Dakaichi fazem parte da cultura pop, ligado mais ao erótico puro e simples. Assim nenhum dos dois têm a pretensão de ser um Lolita ou Madame Bovary ou um O caderno rosa de Lori Lamby, nenhum dos dois visa a passar uma mensagem de crítica social e nem nada disso. Eles são apenas para a diversão, mas há diferenças claras. Por mais que Yarichin utilize temas complexos, o modo como as coisas acontecem e as coisas que são ditas terminam por fazê-lo ser uma obra muito mais de boa. Já Dakaichi ele é mais ligado ao “mundo real” e logo de primeira ele apresenta uma mensagem ruim.

A diferença de Dakaichi em relação a Yarichin é gritante, com um passando uma mensagem horrorosa, enquanto o outro apenas brinca, em um ambiente controlado e fora da realidade (e mesmo assim ainda critica o que está sendo dito).

Então, esse primeiro volume não tem nada que faça a obra ter tantas críticas como teve. Logo, o que foi dito antes, a popularidade e o fator anti-fujoshi, além da dificuldade das pessoas separarem ficção da realidade (e a dificuldade de interpretar a ficção) acabam sendo os grandes responsáveis pelas críticas negativas excessivas a esse mangá. Sim, pois, se o que tem em Yarichin é para receber tantas críticas, um monte de outras obras antes deveria ter tido muito mais críticas do que ele^^.

Opinião final sobre o mangá

Então você está dizendo que Yarichin Bitch Club é um bom mangá? Eu acho que isso é uma outra questão. Eu realmente achei esse primeiro volume bem divertido e cada página é uma surpresa diferente (se é que me entendem). A gente acaba rindo inevitavelmente de diversas passagens e, assim como o protagonista, acha tudo estranho e bizarro naquele clube escolar.

No todo, o mangá é bem escrachado, mas fica bem longe do tipo de obra que eu tenho mais apreço. De fato, eu não achei ruim, mas está longe de ser uma obra que eu indicaria para todo mundo, pois é um título muito erótico e nem todo mundo gosta desse tipo de história.

De minha parte, eu também prefiro romances mais fofos e levinhos como Joy, Girl Friends, Colegas de Classe, Kaguya-Sama, dentre outros, então Yarichin Bitch Club não é um título que eu devo continuar a comprar, pelo menos não inicialmente. Enfim, o mangá não era o desespero que as pessoas pintavam, mas mesmo assim não é para mim.

E a recomendação? Apenas para quem gosta de BL bem eróticos^^.


Ficha Técnica


Título Original: ヤリチン☆ビッチ部
Título: Yarichin Bitch Club
Autor
: Ogeretsu Tanaka
Tradutor: Eliana Celestino
Editora: Panini
Número de volumes no Japão: 5 (ainda em publicação)
Número de volumes no Brasil: 1 (ainda em publicação)
Dimensões: 13,7 x 20 cm
Miolo: Papel offwhite
Acabamento: Capa cartão
Páginas: 240
Classificação indicativa: 18 anos
Preço: R$ 37,90
Onde comprar: Amazon / Loja da Panini

SinopseQual é a verdade… Toono é transferido para um internato só para garotos que fica no meio das montanhas. Lá, conhece Yaguchi e começa a conversar com o rapaz de forma bem-humorada, fazendo dele seu único amigo. No entanto, como é péssimo em esportes com bola, resolve não entrar no clube de futebol com o colega e opta pelo de fotografia, que parece ser mais tranquilo. Entretanto, o clube, formado por veteranos de personalidade forte, era apenas uma fachada e é conhecido como “Yarichin Bitch Club”! À primeira vista, pode parecer uma história vulgar, mas aborda uma adolescência cheia de romance puro e desajeitado que deu origem ao tão aguardado volume, que traz uma história extra especial!!! 


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