O amor sobrevive ao tempo…
Dependendo da sua idade talvez você não tenha noção do quanto a sociedade molda, limita e, até mesmo, agride as pessoas que a compõem, especialmente se essas pessoas – por qualquer razão que seja – não façam parte do “padrão socialmente aceito”.
Se, por exemplo, você for homem e pintar as unhas, será criticado e até execrado pelos seus parentes conservadores, se dizer que não acredita em Deus também. Se você sair na rua completamente sem roupa, as pessoas irão se escandalizar e você irá até mesmo ser preso.
Por outro lado, você pode sair de casa com roupas muito velhas, amassadas, cheias de buracos e você não irá para a cadeia, entretanto as pessoas em sua volta poderão te olhar com olhos críticos, talvez de desprezo, talvez de medo, por você não estar seguindo determinado padrão de vestimenta.
Os exemplos citados são coisas bem simples, mas a sociedade nos julga e nos pressiona de maneira muito mais ampla, seja de maneira individual, seja de maneira coletiva. E o modo como cada pessoa age e reage a esses julgamentos e pressões sociais é bem diverso, variando de época para época, sociedade para sociedade e também de pessoa para pessoa.
Confins de um Sonho, mangá de Yumi Sudo, lançado em fevereiro de 2023 pela editora Pipoca & Nanquim, toca exatamente nesse tema, mostrando como algumas pessoas, por seu gênero ou por sua orientação sexual, acabam sendo muito mais pressionadas e julgadas pela sociedade, e que podem as levar a tomar atitudes intempestivas e sem saída.
O mangá acompanhará a história de Kyoko e Mitsu, duas mulheres que se conheceram quando adolescentes e nutriram uma grande paixão entre si, ao ponto de se rebelarem contra a imposição da sociedade e realizarem ações irreversíveis.
A história começa em 2018, com Kyoko aos 85 anos sofrendo de um transtorno neurodegenerativo e com medo de esquecer o amor de sua vida. Após uma visita inesperada de Mitsu, a obra passará a mostrar diversas cenas da vida das duas em ordem decrescente, perpassando sua história, até chegar ao momento em que se conheceram e que mudou a vida das duas para sempre.
A obra, então, conta a história de duas moças que se amam em meio a uma sociedade ultra-conservadora do pós-guerra, e que devem fazer escolhas para conseguir (ou não) viver esse amor.
Confins de um Sonho mostra exatamente como a sociedade nipônica (e não apenas ela) via (e vê) a mulher, como um ser que deve desempenhar o papel de esposa e mãe, casando-se o mais rápido possível, por amor ou não.
Daí que toda a estrutura social (a família, o trabalho, as pessoas em geral) exerce uma intensa pressão sobre cada indivíduo, de modo que quem não segue essa ordem é mal vista (falam mal dela, riem, se preocupam) e essa pressão – dependendo do estado de espírito e de suas vivências – pode levar pessoas por caminhos tortuosos. E isso é visto em outros mangás também.
Em Spy x Family, por exemplo, mangá publicado no Brasil pela Panini, o autor utiliza um ambiente fictício para mostrar exatamente esse prisma social. A partir do momento que a mulher atinge uma certa idade e não é casada, ela é uma “suspeita”, daí que uma das personagens principais da obra finge um casamento para se ver livre disso. Spy x Family apenas faz essa citação moldando o ambiente, mas não se aprofunda em investigar e questionar o modus operandi da sociedade, pois não é essa a proposta da obra.
Confins de um Sonho, porém, mostra a sociedade real japonesa nua e crua, aponta o dedo na ferida e nos faz ver uma história intensa e triste, também com elementos de coerção social: a gente verá personagem sendo obrigada a casar (ou vendo outras pessoas sentido pena por uma delas não querer, etc, etc, etc), a gente verá o desejo de ser “normal”, e a gente verá diversas reações perante ao contexto coercitivo japonês.
O mundo apresentado na obra é tão carregado que até a simples ideia de duas mulheres viverem serem um casal no pós-guerra praticamente não é mencionada. Não é nem como se fosse um tabu, e sim é algo que parecia não existir fora da ficção, tamanha a carga que se exercia na questão da mulher casar-se e ter filhos. O mangá até apresenta um contra ponto com o mundo atual que – embora ainda seja muito conservador e restrito para o casamento homoafetivo – apresenta uma sociedade japonesa em que é (mais) normal uma mulher não se casar e morar com outra mulher que ama (mesmo que isso seja escondido da família e da sociedade).
A PARTIR DAQUI PODE SER QUE TENHA SPOILERS – LEIA POR CONTA E RISCO
Por esse ambiente carregado, a história das duas personagens não tinha como não ir para o caminho que foi, com uma tentativa de suicídio mal sucedida e uma vida longa das duas cheio de intempéries e sem que pudessem viver o seu amor. Sim, pois, tudo na história está envolto na ação coercitiva que a sociedade têm sobre as personagens, o modo como a impactaram e as atitudes que tomaram perante isso.
O casamento de uma delas é exatamente dessa forma. Por mais que ela não desejasse se casar (afinal já gostava de uma pessoa), tudo o que a cercava e suas aptidões (ou falta delas) lhe obrigaram a escolher a única coisa que era destinada a mulheres na época. Se lhe fosse permitido pela sociedade viver o seu amor, teria vivido e não teria casado com um cara qualquer que lhe foi apresentado.
Mesmo a tentativa de suicídio juvenil não foi uma tentativa “por amor” (ao menos por uma delas), foi uma tentativa de impor a própria vontade contra o que a sociedade queria, contra o que a sociedade alegava que as mulheres deveriam fazer.
A verdade é que a obra tende a enfatizar o quão ruim era (e ainda é) a sociedade japonesa para as mulheres (casamento arranjado, pretendentes, etc) ao ponto de fazer aquilo se tornar uma atitude minimamente pensável. Note-se que as personagens – no momento do ato – não estavam tristes, não estavam depressivas, de modo que aquela tentativa foi única e simplesmente um impulso, impulso este provocado pela própria sociedade.
Cada pessoa recebe e processa os estímulos de uma maneira diferente, então é natural que algumas pessoas apenas sigam a fila sem questionar, enquanto outros partem para caminhos mais difíceis. Em outras palavras, você pode apenas se conformar ou pode tentar lutar mesmo que, às vezes, a luta seja uma derrota 100% certa. E a morte era uma derrota, uma derrota completa e elas sabiam disso, tanto que após o fracasso inicial, a moça que iniciou tudo diz claramente que não queria morrer.
Termina por ser inevitável pensarmos como as duas personagens poderiam – como o próprio mangá diz – ter vivido um romance se a época fosse um pouco mais livre, se fosse um pouco mais parecido com a atualidade, e se as duas conseguissem tomar uma outra atitude em determinado momento. Sim, pois, existiram diversos momentos em que as coisas poderiam ter ido para um outro lado, mas não foram por decisões próprias…
Desse modo, Confins de um Sonho é um mangá de drama daqueles bem pesados que nos fazem refletir sobre como a vida é difícil e como a sociedade é muito mais agressiva para com algumas pessoas. É uma história que te deixa triste em diversos aspectos e momentos, mesmo você já sabendo o que ia acontecer na história.
Confins de um Sonho é um drama muito bom, daqueles que você não consegue parar de ler e te deixam com um gostinho de angústia. Ele mostra uma sociedade real e uma vida (duas vidas) que poderiam ter sido muito diferentes se a própria sociedade tratasse melhor os meus membros, se tratasse a todos por igual. A grande mensagem da obra acaba por ser essa mesma, enquanto a sociedade buscar questionar o que é diferente (ou o que não é convencional), mais e mais pessoas terminarão por ter histórias parecidas.
Ainda que o mangá mostre que a sociedade mudou (agora é possível fingir às claras), ela ainda é arcaica, ainda exerce pressão em demasia para quem não faz parte do padrão. No todo, Confins de um Sonho nos apresenta uma narrativa que realmente nos faz pensar, independente de fazermos parte dessa sociedade ou não.
Recomendo bastante a todos.
ESTA RESENHA FOI FEITA A PARTIR DE UM EXEMPLAR CEDIDO A NÓS PELA EDITORA PIPOCA & NANQUIM, A QUEM AGRADECEMOS A PARCERIA.
Ficha Técnica
Título Original: 夢の端々
Título: Confins de um Sonho
Autor: Yumi Sudo
Tradutor: Drik Sada
Editora: Pipoca & Nanquim
Número de volumes no Japão: 2 (completo)
Número de volumes no Brasil: 1 (completo)
Dimensões: 15,5 x 22 cm
Miolo: Papel pólen bold 90g
Acabamento: Capa cartão com sobrecapa
Páginas: 300
Classificação indicativa: não disponível
Preço: R$ 74,90
Onde comprar: Amazon / Comix
Sinopse: 2018. Kiyoko Ito e Mitsu Sonoda são duas velhas amigas que, aos 85 anos, se reencontram para colocar a conversa em dia. Elas logo começam a pensar no rumo que teriam tomado caso tivessem se apaixonado uma pela outra em uma época em que o relacionamento entre mulheres não fosse um tabu — e o único destino socialmente aceito para uma mulher não fosse o de se casar com um homem. Porém, Kiyoko sofre de um transtorno neurodegenerativo. Sua mente começa a regredir pelas décadas anteriores, passando por diferentes fases dos encontros e desencontros entre elas, pelas promessas feitas e quebradas. Ela volta até setenta anos atrás, quando ambas se conheceram ainda adolescentes, em 1948, na época do pós-guerra. E seu maior medo é se esquecer de Mitsu e de como o amor entre elas quase as levou a uma atitude extrema.
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