Resenha: Happiness, de Shuzo Oshimi

Ação, aventura e o “meio de tudo”

Agora no início de junho, a editora NewPOP concluiu no Brasil o mangá Happiness, de Shuzo Oshimi, sendo esta a primeira obra do autor em nosso país. O mangá começou por aqui em junho de 2018 e o volume inicial foi avassalador, apresentando-nos uma narrativa ágil, extremamente bem-feita e com traços de surrealismo que nos colocavam na mente dos personagens, ainda que pouco víssemos da psicologia ou dos sentimentos deles. A obra, entretanto, seguiu por caminhos completamente inesperados e terminou de um jeito pouco usual, mas muito interessante.

Happiness acontece no nosso mundo normal, porém nas sombras e na escuridão existem os vampiros, as tradicionais figuras míticas que não podem ver a luz do sol e se alimentam de sangue. Formalmente ninguém sabe que eles existem, mas há mitos sobre eles e organizações que buscam encontrá-los. Esse é o pano de fundo do mundo criado por Shuzo Oshimi. A obra, entretanto, não é sobre nada disso. E é aí que está um dos pontos mais legais de Happiness. Ele finge que é sobre isso, mas na verdade trata-se de uma obra sobre pessoas comuns que são colocadas no meio de um turbilhão e o modo como elas sentirão o novo mundo que lhes foi dado e como agirão perante a ele.

O início do mangá, como dito, é bem diferente do que ele se desenvolverá ao longos dos volumes. A obra começa quando conhecemos Makoto (um adolescente bem qualquer-coisa, que não consegue reagir aos desmandos de um grupinho da classe) e vemos a sua transformação em vampiro. Certo dia, ele resolve sair à noite e é atacado por uma garota (que posteriormente descobriremos chamar-se Nora) e esta o faz decidir se ele quer morrer ou se transformar em alguém igual a ela. O garoto implora pela sua vida e tudo muda para Makoto. A comida passa a ter gosto estranho, ele passa a sentir cheiro de sangue, ele começa a ver coisas surreais e sua força aumenta consideravelmente.

Makoto é uma dessas pessoas que preferia ficar à margem de tudo, que não queria incomodar ninguém para não ser incomodado e, consequentemente, viver uma vida tranquila, sem pensar em nada, mas a sua transformação em vampiro termina por modificar totalmente os seus planos e ele acaba levado pelos acontecimentos.

Happiness é, como uma boa obra de ficção, inteiramente calcado na relação causa e consequência das ações. Uma coisa acontece, isso leva a outra, que leva a outra, que leva a outra. Com isso, o que poderia ser uma história escolar de um garoto aprendendo a lidar com sua nova realidade, vai escalonando de tal forma que quando você vê está lidando com seitas e organizações perigosas. Basicamente, Makoto não teria se transformado em vampiro se não saísse de casa. Se não fosse vampiro não teria batido no valentão da sala. Se não tivesse batido nele, não o teria salvado de outros valentões posteriormente. Os dois não teriam ficado amigos, o antigo valentão não teria virado vampiro e assim por diante.

O garoto que queria ficar na dele, quietinho, de repente se vê envolto com bandidos, vampiros perigosos que o querem matar e uma organização que quer dissecá-lo, o que faz com que todo o cotidiano do rapaz, se transforme de uma maneira inimaginável, praticamente do nada. O que parecia certo, não existe mais. Todas as certezas foram destruídas em um piscar de olhos. A obra, então, não mostra outra coisa senão uma alegoria para a própria vida, pois o tempo todo as coisas concretas de nossas pacatas existências são modificadas sem que esperemos e de súbito, mas no caso de Makoto a mudança foi de uma maneira surreal.

Isso é meio que uma marca dos mangás de Shuzo Oshimi (ao menos de boa parte deles), uma determinada coisa acontece e tudo se transforma (de repente você acorda e se vê no corpo de uma mulher, de repente você é alvo de uma lunática, etc), de modo que o protagonista da obra precisa aprender a lidar com a nova realidade e descobrir quem é ele próprio, ou ao menos quem é o seu novo “eu”.

O diferencial de Happiness é que a descoberta não é por uma espécie de iluminação e sim novamente apenas uma consequência natural da ação. Makoto, por exemplo, descobre que não pode mais viver como antes ao ver que sua vida inteira foi revirada do avesso e decide ir embora, mas não temos uma grande elucubração disso tudo, não temos certezas, temos apenas uma reação aos acontecimentos. Ele não cometeu um crime, ele não fez nada de errado, mas mesmo assim acabou virando um ser procurado e não podia mais ficar em sua casa, pois as coisas já não eram mais como antes. Por uma ação qualquer, tudo mudou na vida dele.

Outro diferencial de Happiness é que em um dado momento, o protagonismo da história muda, passando a focar em, Yukiko, a colega de escola de Makoto. Após um certo acontecimento antes da metade da obra, Makoto desaparece e Yukiko passa a ser a figura central da história e passamos a ver o modo como ela lida, anos a fio, com tudo o que aconteceu no passado. Ela foi vítima de um maníaco, viu seu antigo colega de escola desaparecer, e ela continuou vivendo, carregando essas lembranças ruins.

Yukiko não tinha uma personalidade que a destacasse tanto, mas era uma válvula de escape para Makoto em seus primeiros dias de vampiro. Ela era, então, bem prestativa e estava disposta a ajudar o amigo (ou antes todos os amigos) sempre que fosse possível. Isso se perpetua na segunda metade da obra, mas agora ela já é adulta  e tem uma personalidade um pouco mais introspectiva, quase querendo se esconder, como se tivesse medo das coisas escuras da noite.

Essa segunda parte (ou início dela) tem um toque mais psicológico do que nos volumes iniciais, pois vemos os sentimentos de Yukiko, os seus medos e o intenso desejo de reencontrar o amigo perdido. O passado a assola e o modo que ela vive, também uma consequência de seus atos (de se tornar amiga de Makoto, de tentar ajudá-lo, etc), ainda é reflexo dos acontecimentos precedentes, daí o jeito introvertido, daí o medo de algo que escondido. Apesar disso, o desejo de ajudar os amigos fará Yukiko correr perigo novamente, o que levará ao desfecho do mangá.

O final da obra, mais ou menos do volume 7 em diante, é bastante estranho, por explorar dois aspectos chocantes sobre a questão dos vampiros. De um lado uma seita criada por um lunático que queria se tornar um “chupador de  sangue”, e de outro uma organização que busca fazer experimento com os decentes do Conde Drácula. Esses desdobramentos estão ligados aos acontecimentos da primeira parte da história, quando o antigo valentão da classe de Makoto foi levado pelo lunático, e quando uma organização prendeu Makoto e Nora.

A seita é esquisitíssima como todas as seitas, com pessoas acreditando cegamente em alguém como se ele fosse uma divindade, buscando uma salvação, etc. Já a organização também é aquele tipo de sempre, buscando fazer experimentos dos mais cruéis possíveis. É por meio deles ficamos sabendo de o quão ruim é a natureza imortal dos vampiros e o quanto Makoto e Nora sofreram ao longo dos anos.

O reencontro de Makoto e Yukiko.

O estranho desse final (e também é o que faz ser legal) é que a obra resolve apenas e tão somente a questão da seita. Makoto consegue escapar de seu aprisionamento, mas a organização continua a existir do mesmo jeito de antes e não havia nada que ele pudesse fazer, pois é algo que pessoas comuns não podem ir contra, por ser algo grandioso demais. Makoto conseguir escapar junto de Nora já é, por si só, a maior vitória dele e não havia como ele querer acabar com tudo.

Como disse no início do texto, Happiness é sobre pessoas comuns que foram jogadas em um turbilhão de uma hora para outra. Elas não tem poder contra organizações e só o que podem fazer é sobreviver. Derrotar a seita era algo fácil para um vampiro, mas escapar de uma organização foi apenas um golpe de sorte, um golpe de sorte que só aconteceu porque às vezes temos uma ajuda inesperada.

O final, então, é bem interessante, pois reafirma o que a obra vinha mostrando até então, que ela é apenas um recorte de um mundo, a história acontece no “meio de tudo”. Os vampiros continuam a existir. A organização continua à procura deles. Não sabemos quem são, assim como não sabemos a origem dos vampiros, eles simplesmente existem e não há necessidade de maiores explicações. O que importava eram apenas os personagens, Makoto, Yukiko, Nora, etc, e o modo como eles viveram após adentrarem o mundo dos vampiros.

Como dito, a obra finge ser sobre vampiros (no modo geral), mas fala sobre pessoas afetadas por vampiros, ela fala sobre a humanidade, a percepção e o desejo dos seres humanos perante um mundo desconhecido. Se lá no volume 1, a gente não sabia para onde ia a obra, agora que ela acabou, a gente pode dizer que ela foi para o lugar certo e falou das coisas certas.

Em resumo, Happiness é um bom mangá daqueles que te pegam por uma certa premissa e você acaba gostando por tudo o que ela apresenta, o jeito diferente de a obra ser conduzida, os desenhos do autor, etc.

Aliás, o jeito do autor de contar a história, com um estilo narrativo ágil, como poucas falas, fazem com que em menos de 3 horas você consiga ler todos os volumes. Então, Happiness está recomendadíssimo. Não é nenhuma obra que mudará sua vida, está longe de ser grandiosa, mas é um entretenimento muito bom. Se ainda não leu, dê uma chance a obra, pois não irá se arrepender.

Ficha técnica

Título Original: ハピネス
Título NacionalHappiness
Autor: Shuzo Oshimi
Tradutor: Denis Kei Kimura
Editora: NewPOP
Dimensões: 11,5 x 17, cm
Miolo: Papel Offset
Acabamento: Capa cartonada
Classificação indicativa: 14 anos
Número de volumes no Japão: 10 (completo)
Número de volumes lançados: 10 (completo)
Preço: R$ 16,00 (volumes 1 a 5)/ R$ 18,00 (a partir do 6)
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2 Comments

  • Acho que é bondade sua dizer que Happiness “finge” ser alguma coisa. Pra mim, é uma obra extremamente perdida. Não fala coisa com coisa. Fala de algo geral como felicidade, sem nenhum tipo de discussão interessante, sem chegar a lugar algum, com um final apressado. Essa parte da seita é horrível, a ponto de apelar pra uma tortura e sofrimento gratuito com essa desculpa de mostrar o quão o dono da seita era um cara ruim. A forma como o cara vê os vampiros como Deuses é legal? É. Serve pra alguma coisa tematicamente? Não, só pra esse enredo bem encadeado, mas ao mesmo tempo desinteressante pelo vazio temático. Pra mim, tanto faz que aconteça desgraça com um bando de personagem se eles forem um grande nada. Não me emociona, não me convence. É só apelação. No começo estava animado, mas larguei a coleção no volume 7 e fui terminar por scan de tão ruim que estava. Uma decepção, depois de ler outras obras legais do autor e de ter visto o excelente anime de Aku no Hana.

    Deixo aqui o meu elogio ao tratamento da editora. As capas, o papel, tudo muito bonito nas edições. Parabéns a New Pop.

  • Li os 3 últimos volumes ontem, realmente foi uma obra muito boa de acompanhar!
    Já li Inside Mari e também recomendo, agora fico no aguardo das outras obras do autor saírem por aqui.

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