Ele quer despertar um trauma nos leitores^^
Shuzo Oshimi, autor de Happiness, Aku no Hana e Devil Ecstasy, era um dos convidados para participar da edição deste ano da Napoli Comicon, na Itália. Entretanto, tendo em vista a pandemia do novo coronavírus o evento não pôde ocorrer e a visita do mangaká foi suspensa.
Mas, na manhã desta terça-feira, 30 de junho de 2020, a editora Panini, responsável por levar Oshimi para a Itália, postou, em seu site, uma entrevista realizada por Matteo Stefanelli (dono do site Fumettologica) com o autor em que foram feitas várias perguntas sobre a obra dele. A seguir traduzimos essa entrevista do italiano para o português para vocês.
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Matteo Stefanelli: Em dez anos, suas obras lidam com diferentes gêneros – drama, horror, ficção científica, slice of life -, mas sempre gravitando em torno de um único centro: a juventude. Por quê?
Shuzo Oshimi: Acho interessante descrever e desenhar os fortes desejos dos personagens, de qualquer idade e condição. Traçando o conflito entre o desejo oculto no coração e a realidade a ser enfrentada, cria-se uma história sobre a juventude. Eu vejo dessa forma.
A juventude representada em seus mangás é estonteante, intensa e dramática. E é marcada por muitas obsessões: pela auto-afirmação e pela literatura em Aku no Hana, pela redenção e pelo sangue em Happiness, pelas relações familiares em Chi no Wadachi, etc. O desespero pela inadequação à vida chega perto de tocar o abismo do suicídio. Como os seus personagens lidam com o desejo pela morte?
Quando você começa a pensar muito seriamente sobre o que significa viver, além de todos os aspectos que você mencionou, acho que também se chega ao desespero que leva ao suicídio. Dito isto, porém, nas minhas histórias, nunca quero levar os protagonistas a esse fim. A vida pode não fazer sentido, mas ainda tem um valor. Esse conceito estava no centro do que eu queria expressar quando criei Aku no Hana. Posteriormente, em Chi no Wadachi, aprofundei-me ainda mais: e quando a vida não tem mais valor, deve-se continuar vivendo?
Existe um padrão que se repete em suas histórias: há um trauma, depois uma tentativa de reprimi-lo e depois as complexas consequências da administração do problema. Incluindo aí chantagem, equívocos, manipulações e gestos extremos. No entanto, o desenvolvimento não colapsa no niilismo: a maturação chega e com ela a consciência. Os finais de Happiness e Aku no Hana, no entanto, deixam um gosto ruim na boca: crescer significa amadurecer, mas também perder alguma coisa.
Não gosto de histórias que falam sobre niilismo, porque no meu trabalho eu realmente gostaria de ir além do niilismo. Penso que é possível tornar-se niilista pela amargura de perder alguma coisa, mas no niilismo e no desespero não se vive. Diante de um ponto de virada, você pode escolher um caminho para seguir. Escolher um e seguir em frente envolve perder outra possibilidade, mas ao mesmo tempo, para si mesmo, é uma esperança.
Em seus mangás, o sexo desempenha um papel fundamental. Geralmente, é uma pulsação incontrolável. Em Chi no Wadachi, o incesto é evocado, Já em Aku no Hana e Happiness, o sadomasoquismo. De onde vem seu interesse pelo erotismo e suas nuances mais perturbadoras, violentas e perversas? Que experiências pessoais você tentou transferir para o seu mangá?
Digamos, que eu fui bastante precoce. Quando eu tinha oito anos, aprendi sozinho a praticar a masturbação, mas meus colegas de classe ainda não se interessavam por sexo. Fiz isso secretamente como se estivesse mantendo um segredo. Mais tarde, durante o ensino médio, comecei a ler quadrinhos eróticos bem pesados e, nesse mesmo período, comecei a me apaixonar por pintura. Por isso, tentei imitar os desenhos de Odilon Redon, Max Ernst e Hans Bellmer e, ao fazê-lo, acredito ter cultivado meu gosto pessoal.
As edições de Aku no Hana, Inside Mari e Shino-Chan são acompanhados por comentários e notas que, além de explicar alguns elementos de suas obras, são uma espécie de autobiografia por fragmentos. Por que você decidiu revelar aos seus leitores episódios íntimos da sua vida, da gagueira ao relacionamento com amigos e familiares?
Certa vez, um editor me disse: “Nos mangás, é mais interessante descrever seus sentimentos em detalhes, como se você os estivesse passando pelo buraco de uma agulha”. Os quadrinhos que me impressionaram foram, de fato, aqueles que me deram perguntas como estas: “Por que eles sabem sobre as coisas que apenas eu deveria conhecer sobre mim mesmo? Essa história fala de mim?”. Eu também gostaria de criar trabalhos semelhantes. Então, eu tento explicar a parte íntima que eu queria esconder, mais do que qualquer outra coisa.
A biologia invulnerável dos vampiros em Happiness, a troca de corpos em Inside Mari, o fetichismo de Nakamura e Makoto em Aku no Hana: qual a importância do corpo em suas obras? Você gosta de desenhar corpos e seus detalhes?
A coisa mais importante em meus desenhos é o rosto humano. Só mais tarde penso no corpo. E então chegam as paisagens: eu gostaria de tornar o cenário o mais subjetivo possível, ou seja, deformado de acordo com o humor de um personagem. Quando retrato um rosto, procuro nos arquivos das minhas memórias. Eu procuro expressões faciais que permaneceram gravadas no meu cérebro. Repito a mesma operação, então, para delinear um corpo. Lembro-me das figuras dos corpos que vi ou toquei em minha vida cotidiana. É um trabalho árduo, mas também posso dizer que é precisamente para desenhar esses aspectos que eu amo criar quadrinhos e trabalhar neste mundo.
O suspense sempre foi uma característica de seu modo de contar histórias. Chi no Wadachi, sua série mais recente traduzida na Itália, mostra isso bem, visto que é um thriller psicológico muito tenso. A leitura de seu mangá geralmente produz ansiedade e inquietação: é importante perturbar os leitores?
Sim, é importante porque os leitores não lerão meus quadrinhos até o fim, se eu não os envolver, perturbando-os. Mas por outro lado, para me dar uma boa motivação para criar um mangá, às vezes eu gostaria de lançar uma espécie de maldição ou despertar algum trauma nos leitores.
De todos os motivos gráficos que caracterizam seus mangás, um sempre me impressionou: os olhos. Em Aku no Hana são um símbolo recorrente, tanto através do famoso desenho de Odilon Redon, quanto nas mais diversas sequências alegóricas, como no capítulo 48, em que a própria cidade parece fixar o jovem Kasuga com “seus” olhos. Em Happiness, os olhos bem abertos de Makoto transmitem sua fúria assassina e terror sobre o que ele observa; A mãe de Osabe em Chi no Wadachi, com sua expressão sorridente mas atordoada, permite que ela entenda a psicose. Se pode dizer que a maioria das emoções, em seus mangá, passa por essa aparência?
Provavelmente, comparado a todos os outros quadrinhos existentes no Japão, meus mangás contém o maior número de desenhos com olhos arregalados (risos)! Eu sempre quero desenhar os olhos. Estou particularmente atento aos movimentos: quão largos são ou como são colocados altos ou baixos. Quando alguém sente um peso na consciência, seus olhos se voltam para a esquerda; e quando alguém mente, os olhos apontam para a direita. Também adoro desenhar a boca de acordo com fotos muito aproximadas: uma boca entreaberta que está prestes a dizer algo, uma boca em um momento antes do sorriso… e assim por diante. A flor dos olhos de Odilon Redon olha para cima, com a rotação máxima possível. Parece-me que ele está olhando para além do mundo e, por esse motivo, eu o usei como leitmotiv em minha obra.
Em Aku no Hana, Nakamura e Kasuga sonham em deixar sua cidade asfixiante, indo para o “outro lado”. Acho que se pode dizer que Okazaki em Happiness, escolhendo a imortalidade como vampiro, alcança os objetivos de Nakamura. O “outro lado” só pode ser alcançado na ficção… A realidade, no entanto, é diferente, e talvez o Kasuga mais maduro o explique bem quando grita com os pais: “Estou de volta”. O que leva tantos de seus personagens a escapar da realidade construindo esse “outro lado”?
Em Aku no Hana, usei uma expressão – “outro lado” – com a qual queria representar um mundo real que existe fora do mundo real, maldito e feio. Era a ideia de um mundo em contraste com a sociedade circundante. Por que chegamos a esse estado, com esse pensamento…? Do ponto de vista do contexto social dos personagens, é uma fuga ou medo da realidade. Mas para aqueles que se sentem marginalizados, porém, é uma esperança. Há várias pessoas que sentem que o mundo interno é o mundo “real”. Eu tenho sido um desses.
Nas sequências mais intensas para os personagens, às vezes o desenho muda drasticamente: explode, desaparece, treme… Os corpos se tornam chamas negras em Aku no Hana, pinceladas de tinta em Happiness, hachuras divisórias em Chi no Wadachi. Às vezes, predominam tons expressionistas ou simbolistas, outros mais impressionistas ou art déco, e também vemos ecos de Munch, Ernst, Goya e outros pintores e artistas. O que o leva a mudar de direção no desenho?
Tento reproduzir em meus quadrinhos o mundo que o protagonista vê e percebe. O rosto que parece bonito para ele, gostaria de torná-lo muito bonito, e a paisagem que parece bonita deve ser esplêndida. Quando o personagem está com medo, eu retrato o mundo como se estivesse prestes a entrar em colapso. Costumo citar as pinturas de outros pintores porque considero uma direção adequada expressar os sentimentos subjetivos dos protagonistas. Quando o protagonista atinge um limite extremo, e sua consciência entra em colapso, deformando drasticamente o desenho: quero que os leitores reconheçam suas experiências como sendo suas e, assim, experimentem as mesmas sensações. Meu pintor favorito é Odilon Redon e Andrew Wyeth é o segundo. Entre os pintores italianos, no entanto, gosto de Giorgio Morandi.
Em alguns mangás, como Aku no Hana, são citadas algumas leituras e fontes de inspiração. Já Drifting Net Café é uma homenagem explícita ao Drifting Classroom, de Kazuo Umezu. Quais foram os mangás que te formaram e quais são os autores com os quais, hoje, você sente compartilha uma certa harmonia?
Os mangakás que me influenciaram são Yoshiharu Tsuge, Naoki Yamamoto, Jun Hayami, Kazuo Umezu, Tetsu Adachi, Junji Ito, Daisuke Igarashi, além de vários outros. Aqueles com quem sinto que hoje compartilho alguma sintonia são Tomomi Abe e Yukiko Goto. Entre os mais jovens, no entanto, há Ruru Jodo.
Você continuará falando sobre a juventude em seus próximos projetos? E quais temas – também semi-autobiográficos – você pretende desenvolver?
Recentemente, iniciei a pré-publicação de um novo mangá, Okaeri Alice. O tema deste trabalho é uma pesquisa sobre a sexualidade masculina e sua decomposição. Os protagonistas são um casal formado por um garoto e uma garota, mas, neste caso, a puberdade não é em si o tema principal. Quanto à veia semi-autobiográfica, penso que, de algum modo, acabe com Chi no Wadachi. No entanto, não posso dizer exatamente o que vou desenhar a seguir, até que eu termine essa obra.
Obrigado a todos os leitores.
Shuzo Oshimi já teve quase todas as suas obras publicadas na Itália, sendo que agora em 2020 cinco títulos novos começaram a sair. Em maio, a editora Goen começou a publicar Inside Mari e em junho a Panini lançou quatro obras, Yutai Nova, Avant-Garde Yumeko, Sweet Poolside e Devil Ecstasy.
No Brasil, a única obra publicada do autor foi Happiness, pela editora NewPOP. A mesma editora anunciou outros dois títulos do autor, Aku no Hana e Devil Ecstasy.
Alguém me diz se tem spoiler de alguma obra nessa entrevista pfvr haha
Não tem.