Crendo no incrível…
Durante muitos anos, os mangás do grupo CLAMP eram lançados no Brasil exclusivamente pela editora JBC. Não que houvesse um contrato estabelecendo que só ela poderia licenciar títulos das autoras, mas aparentemente ela era a única editora interessada ou a que sempre ganhava as disputas pelas obras. Isso, porém, mudou no início da década de 2010. A editora NewPOP licenciou uma série de obras do CLAMP, dentre eles até mesmo um mangá então recente das autoras e que ainda estava em andamento, Gate 7.
Mas se Gate 7 era O título para muita gente, para nós e outras pessoas, algumas obras mais antigas chamaram mais a atenção na época. Um deles foi O homem de várias faces.
Iniciado no Japão em 1989 e concluído em 2 volumes, esse mangá foi publicado no Brasil em 2013 e apresenta muitas das coisas que nos fazem amar as obras do CLAMP (e querer mais e mais obras dela por aqui), ao mesmo tempo que mostra o que há de mais horrível e questionável nos títulos das autoras (que facilmente nos faria dizer que é a pior obra do grupo lançada no Brasil). Mas por que estamos sendo tão radicais? Bem, falaremos melhor a seguir sobre como é a obra e os diversos problemas que há nela.
A história superficial de O homem de várias faces é bem simples até. Akira é incumbido por suas duas mães de roubar alguma coisa que elas queiram e ele manda um bilhete avisando ao dono que irá roubá-lo. Mesmo com todo aparato policial buscando proteger o objeto, Akira consegue roubar e sai ileso sem qualquer contratempo. E é isso o que veremos sempre e sempre.
Mas é claro que, por se tratar de uma obra do CLAMP, o amor estará envolvido de alguma forma, e de uma forma bem impactante. Em uma dessas vezes em que Akira sai para roubar à noite, ele é perseguido e termina se escondendo em uma casa, conhecendo nela uma garota chamada Utako. A história se desenvolve com Akira cometendo seus crimes, ao mesmo tempo em que ele e Utako vão ganhando intimidade e passando a gostar um do outro, até se amarem.
Aliado a isso, a obra tem um estilo de humor muito peculiar que fica entre o ingênuo e o nonsense, causando gargalhadas facilmente em qualquer leitor, é o melhor do CLAMP em sua essência. Ao mesmo tempo, há uma série de reflexões sobre a vida e a felicidade, que são muito interessantíssimas e que nos levam a refletir sobre o tema, mostrando também muito da essência do grupo e que vemos em diversas de suas obras.
Até aí tudo parece normal, uma história bastante corriqueira aos moldes de outras obras do CLAMP, mas Akira tem apenas 9 anos, enquanto Utako tem apenas 6. Um ladrão de nove anos e um romance entre duas crianças. Isso é uma parte do que é O homem de várias faces, um quê de sem sentido que fica pior a cada instante.
A PARTIR DESTE PONTO, O TEXTO PODERÁ CONTER MUITOS SPOILERS SOBRE O MANGÁ. LEIA POR CONTA E RISCO.
- Suspensão de descrença
Talvez você já tenha ouvido falar do termo “suspensão de descrença“. Caso não, de forma bastante resumida esse é o nome que damos ao ato de, ao assistir ou ler uma obra, tratar as coisas que acontecem como verdade, mesmo que tais coisas sejam impossíveis de acontecer no mundo real. Por exemplo, a nossa suspensão de descrença ocorre quando acreditamos que alguns personagens de Dragon Ball possam voar ou que exista um certo poder que revive pessoas.
Existem diversos níveis de suspensão de descrença, mas quando uma obra é bem trabalhada por mais maluca que seja a trama conseguimos acreditar facilmente, pois a verossimilhança da obra é bem feita. Mas quando ela é deficitária, dificilmente algo se salva.
O homem de várias faces é um caso em que você tem que estar completamente distraído, no mundo da lua, para poder acreditar na história. É difícil crer que uma criança saia para roubar e, ainda mais, que suas duas mães incentivem. Mas isso é até passável. A nossa suspensão de descrença nos permite ver isso como algo natural naquele mundo criado, pois essa parte da história meio que não se leva a sério. É uma obra de comédia, com o ladrão mega-famoso e o “detetive” atrapalhado atrás dele. Ou seja, por ser comédia pura e simples, esse tipo de situação absurda torna-se natural e passamos a aceitar como verdade sem maiores problemas…
Sim, pois, em uma obra de humor, a suspensão de descrença acaba sendo maior, e conseguimos aceitar bem as diversas maluquices que se estabelecem, como quando o Chapolin joga uma janela no chão por não conseguir mais ver um provável monstro.
O problema é que parte da história de O Homem de Várias Faces busca sair do clima ameno da comédia e passa a tentar nos passar lições sérias e, de certo modo, uma visão de mundo sobre romantismo, felicidade e vida. Só que a obra falha e muito nesse sentido, fazendo com que tudo o que foi passado perdesse sentido. Isso se deve sobretudo pela presença de Utako e de sua irmã Mako.
Em um certo momento, a obra faz Utako e sua irmã terem toda uma discussão filosófica sobre o amor verdadeiro, sobre a vida, casamento e tudo mais. E é uma discussão excelente, das melhores que a gente já viu em mangás, que faz a gente pensar sobre os sentimentos (nada dura para sempre, por exemplo) e as formas de amar… só que elas têm 6 e 7 anos. É impossível conceber que duas crianças tenham conhecimentos avançados sobre o amor e felicidade e discutam isso como se fossem duas amigas à véspera do casamento. Não há uma lógica interna (algo dentro da própria obra) que possa nos fazer acreditar.
Se fosse apenas a comédia por si só, estaria tudo bem, afinal o estranhamento teria sido feito justamente para causar o riso, mas a história se leva a sério nessa questão de romantismo e as crianças ficam parecendo simulacros de adultos e a nossa suspensão de descrença deixa de existir totalmente.

Para piorar o quadro, o CLAMP tenta passar uma de suas ideias sobre o amor mais recorrentes (idade não é um problema para o amor) de uma forma extrema e demais questionável. Há dois pontos cruciais nesse sentido. O primeiro é que antes de Utako se apaixonar por Akira, ela amava seu professor 17 anos mais velho O_o. Obviamente o professor a rejeitou por causa da idade, mas o mangá usa isso para passar a mensagem de que essa justificativa é um absurdo e de que idade não é um problema. A fala acaba ficando em um meio-termo entre a comédia e a fala séria. No início, a gente até considera que é apenas uma cena de humor, mas quando comparamos com o todo, a fala se transforma claramente em mais uma das crenças do CLAMP sobre a questão do amor.
O segundo ponto acontece lá para o final do mangá, na última página. As autoras voltam a esse tema e colocam um pequeno trecho que fala sobre Mako, a irmã de Utako. No trecho diz que Mako se casou aos 22 anos com um cara de 40 anos. Nada demais isso, afinal idade realmente não deveria ser um problema para um relacionamento amoroso. A partir do momento em que dois adultos decidem se relacionar, diferença de idade não importa em nada. O problema de verdade é que o CLAMP estraga uma discussão realmente interessante e diz no trecho que ela o namora desde que tem 7 anos de idade O_o.
Por mais que coloquemos o mangá em seu contexto de produção (Japão, anos 1980 e início dos anos 1990) e tentemos ver o trecho como uma passagem de humor, não há como deixar de ver o quão bizarro e sem sentido é sugerir que uma criança namora um adulto de 25 anos, principalmente quando a obra busca passar uma mensagem de que não existe idade para o amor. Estranhíssimo, esquisitíssimo, não tem o que se comentar.
- Problemas de narrativa
Existem diversas outras temáticas que incomodam durante o mangá, mas podem ser resumidas no que foi dito acima, mas além disso tudo a obra ainda tem alguns problemas de narrativa. O homem de várias faces parece ser mais uma das inúmeras obras abandonadas pelo CLAMP. Explicaremos o porquê de acharmos isso.
O mangá possui uma narrativa mais episódica em que cada capítulo encerra uma parte da história. Ao mesmo tempo, a história vai progredindo, mostrando o relacionamento de Akira com Utako, os roubos feitos pelo garoto e as discussões sobre amor e felicidade que comentamos mais acima. O problema é que o mangá não resolve seus problemas internos. Ele apresenta diversos elementos e não os desenvolve.
Akira, por exemplo, vive com suas duas mães, mas elas não são lésbicas (acho), elas são casadas com o mesmo homem! Durante boa parte do mangá a gente pensa que ele está morto, mas de repente ele aparece no natal, sem qualquer explicação e depois some de novo e não é mais mencionado. Outro ponto que não tem qualquer conclusão é o fato de o doutor da escola ser tio de Akira e isso também nunca ser explorado.
Está certo que a obra é episódica e é de comédia, mas esses pontos não serem desenvolvidos torna o mangá bastante problemático narrativamente falando, pois não há muito como argumentar que tais pontos não são importantes. O pai de Akira ter aparecido no natal, por exemplo, é algo completamente dispensável e mesmo assim foi inserido. Deveria haver uma exploração do porquê de ele ter sumido, qual a intenção dele em deixar o menino com as duas mães, etc, mas não houve nada disso. Os porquês se acumulam e a história acaba sem que eles tenham sido resolvidos…
- O homem de várias faces é tão ruim assim?(E conclusão)
Você pode olhar o copo meio cheio ou meio vazio. Como eu disse mais acima, você tem que estar completamente distraído, no mundo da lua, para poder acreditar na história. Agora, eu digo mais: você precisa não ligar para nada para conseguir se divertir. O homem de várias faces é um mangá divertido sim (eu, pelo menos, consigo rir bastante), mas você não pode ficar pensando em lógica e nem em qualquer outra coisa para conseguir apreciar o mangá. O problema é que quanto mais livros e quadrinhos você vai lendo, mais difícil torna-se deixar a mente vazia e deixar de pensar em lógica. Então as chances de gostar desse mangá, são bem, bem difíceis…
Em suma, para concluir, O homem de várias faces é um mangá bastante divertido, mas sem dúvida alguma é uma das piores histórias em quadrinhos que tive a oportunidade de ler nos últimos tempos, possuindo tanta coisa questionável e sem sentido que é quase impossível não des-recomendá-lo para todo mundo.
Então, se você não gosta de obra de CLAMP ou nunca leu uma obra do grupo, passe longe de O homem de várias faces. Se você gosta, então talvez você deva ir atrás apenas e tão somente para completar sua CLAMP-coleção, mas não espere uma obra boa. A verdade é que o mangá é mais um compêndio de frases interessantes do que uma narrativa, ainda que tenha muitas passagens divertidas que nos fazem rir.
Ficha Técnica Título Original: 20面相におねがい!! Título: O Homem de Várias Faces Autor: CLAMP Tradutor: Karen Kazumi Hayashida Editora: NewPOP Número de volumes no Japão: 2 (completo) Número de volumes no Brasil: 2 (completo) Dimensões: 13,2 x 18,9 cm Miolo: Papel offset Acabamento: Capa cartonada com páginas coloridas em couchê Classificação indicativa: Livre Preço: R$ 14,00 Onde comprar: Amazon / Comix
Bem, eu adiquiri uma “CLAMP-fobia” ja que a maioria das obras da clamp eu nao curti. Só que esse eu curti exatamente por nao conter tudo que eu odiasse em obras da clamp. Só esse e guerreiras magicas pra mim se salvam no meu gosto
AMEI A RESENHA!!! Muito boa e completa, conseguiu passar muito bem o que eu sentia lendo várias obras da CLAMP…
Há uns anos atrás eu tinha minha CLAMP-coleção e achei cada estória… meh. Angelic Layer é episódica e decepcionante, Chobits constrói tudo pra um mistério cuja resolução parece piada forçadíssima de ecchi e, claro, Shunkaden e O Homem de Várias Faces, que são totalmente incompletos e por várias vezes desconexos, apesar de arte linda e de algumas passagens (como você pontuou). Acabei vendendo a maioria delas e, sinceramente, não me arrependo nem um pouco.
O melhor da CLAMP pra mim, considerando o conjunto todo, é ainda o primeiro delas que eu li, Tokyo Babylon, mas, se ignorarmos algumas incongruências ou falta de finais, xxxHolic, Tsubasa, X/1999, Sakura Card Captor e Kobato conseguem ficar acima da média do que vemos em seus respectivos gêneros. É aquela coisa, né, não chega a ser perfeito, mas os pontos positivos realmente se destacam do que costumamos ver…
(espero que escreva mais resenhas porque ficou incrível o texto e a análise, sério <3)
Valeu pela resenha, pensei que era só eu que achava um baita discurso desse ser totalmente nulo em relação a idade dos personagens
Cara adoro as obras do CLAMP, tenho quase todas lançadas por aqui, mas esta resenha me fez repensar a compra desse mangá. Se há algo que não aprovo na cultura japonesa é a romantização de relacionamentos entre adultos e crianças (os chamados lolicons que me odeiem, mas isso é bizonho!) Por ese motivo, e ainda somado com o fato de narrativa falha, vou passar BEM longe dessa obra. Obrigada.